HIPÓTESES DE TRABALHO PARA UM ESTUDO DA REVOLUÇÃO INGLESA DO SÉCULO XVII.
No vertente bosquejo de comunicação, assumo conscientemente os riscos de ventilar algumas hipóteses de trabalho bastante singelas, e quiçá bem esquemáticas, sobre determinados aspectos da assim designada Revolução Inglesa do século XVII e seu coetâneo “Exército de Novo Tipo”, organizado por Oliver Cromwell.
De proêmio, faz-se mister alinhavar certas particularidades metodológicas deste esboço: a orientação aqui adotada pretende-se manifestamente marxista, conquanto não se mostre infensa a certa tendência teórica caudatária do funcionalismo sociológico.
Nesse panorama, colho do ensejo para exorar permissão ou vênia para reproduzir ipsis litteris uma contribuição metodológica bem conhecida do próprio Marx, que reputo axial nesta ocasião, inscrita na seção intitulada “O método da Economia Política”, por seu turno insculpida na “Introdução” aos famosos cadernos de apontamentos econômicos dos anos 1857-1858, publicados em Moscou no ano de 1939 sob o título de “Esboços dos Fundamentos da Crítica da Economia Política”, ou simplesmente Grundrisse, na língua alemã, como são mais amiúde suscitados.
Eis a dicção de tal citação, in verbis: “A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A Economia burguesa fornece a chave da Economia da Antiguidade etc. Porém, não conforme o método dos economistas que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, o dízimo, quando se compreende a renda da terra. Mas não se deve identificá-los”
Tal excerto, como salta aos olhos, apresenta-se impregnado do jargão e da nomenclatura das ciências naturais, e não foi por acaso que Marx fez questão de encaminhar solenemente um exemplar da primeira edição de “O Capital” ao conspícuo naturalista Charles Darwin: as metodologias manuseadas pelos dois insignes autores do século XIX compartilham mais do que meras coincidências, parecendo lícito aventar uma forte equivalência entre as mesmas. Vale dizer que o materialismo histórico e a teoria da evolução das espécies ostentam mais do que meros pontos de contato, dês que guardam, com efeito, uma estreita simetria metodológica.
Nesse diapasão, impõe-se dessumir que adoto, aqui, metodologia francamente oitocentista, bastante inquinada de pretensões porventura cientificistas, hoje talvez em desuso, mas, como já advertido, ouso correr o riscos ínsitos a tal subscrição teórica e venho, por conseguinte, postular que a Inglaterra, berço da Revolução Industrial e país pioneiro da grande burguesia fabril - onde, aliás, os dois autores aludidos conceberam suas respectivas obras magnas – a Inglaterra pode esclarecer muito, também, acerca da política hodierna, de sorte que a investigação de seu século XVII, notadamente dos revolucionários anos 1640 a 1660, irradia luz intensa sobre as grandes tendências políticas encontradiças ainda hoje, máxime quanto às formas do Estado burguês.
Imperioso admitir que o festejado professor José Jobson de Andrade Arruda, desta universidade, já encetou estudo que julgo exauriente sobre as íntimas relações entre a Revolução Industrial dos setecentos e a assim designada Revolução Puritana do século anterior, esgrimindo inclusive a tese da continuidade entre ambas sob a denominação comum de “A grande revolução inglesa de 1640 a 1780”, com declinar prioritariamente os aspectos macroeconômicos de tal fenômeno britânico.
A pretensão, aqui, cinge-se aos aspectos mais especificamente políticos de tal processo, colimando desvendar em que medida a revolução inglesa do século XVII e o Exército de Novo Tipo de Oliver Cromwell prefiguram elementos do ulterior Estado já sob a égide da burguesia industrial britânica. Ora, se as formas políticas superiores revestem-se do condão de iluminar as vetustas estruturas de poder que as antecederam, não parece infundado supor, por ilação simétrica, que os pródromos, a saber, os primeiros ensaios ou simulacros da democracia de extração burguesa também esclarecem sobre os problemas políticos contemporâneos, raciocínio este que se nos antolha inclusive mais consentâneo com as matrizes do pensamento dialético.
Assentadas, pois, tais premissas metodológicas e teóricas, insta assinalar, ainda que de forma breve e em consonância com os modestos propósitos desta comunicação, as hipóteses de trabalho propriamente ditas e de antemão anunciadas.
Partimos então de um fato que reputamos irrefutável: o pioneirismo inglês quanto à irrupção da grande indústria fabril e o correspondente advento da novel classe social da grande burguesia industrial em solo britânico, ambos engendrados no cerne da Revolução Industrial do século XVIII.
Nesse passo, mister retroagir a época mais remota no tempo, notadamente a Idade Média na Europa ocidental, para haurirmos elementos histórico-comparativos em relação a nosso ponto de partida, e para tanto vamos nos socorrer em boa medida da distinção jurídica entre posse e propriedade aventada por juristas pandectistas alemães da cepa de Friedrich Carl von Savigny e Rudolf von Jhering.
Destarte, durante a época medieval no Ocidente, predomina aquilo que o historiador inglês Perry Anderson designa unidade orgânica da exploração econômica e coerção político-legal: sobre uma base de incipiente divisão social do trabalho, a classe proprietária da terra extrai o excedente econômico da classe trabalhadora camponesa mediante o recurso extra-econômico da violência direta sobre esta última, a qual, no entanto, mantém a posse direta dos meios de produção.
A nobreza medieval não guarda a posse direta da terra nem dirige diretamente o processo produtivo em um ambiente de divisão do trabalho pouco desenvolvida e prioritariamente voltado à produção de valores-de-uso, onde a forma mercadoria apenas esboça seus primeiros ensaios nas fímbrias do sistema.
A violência das armas da nobreza protege e garante a propriedade fundiária de tal classe, a qual não atua economicamente na produção direta da vida material da sociedade. Enfim, extração do excedente econômico e proteção da propriedade fundiária são exercidos mediante a violência das armas pela classe terratenente.
O Estado feudal, assim, coincide com a classe nobiliária armada, e não há notícia da formação de partidos políticos nos moldes modernos.
A função social da guerra medieval, conquanto pouco estudada pelos marxistas, talvez possa ser subsumida na necessidade de incremento do excedente econômico pela expansão territorial e seu consectário acréscimo do meio de produção por excelência em tal época, a saber, a propriedade fundiária.
Com o advento da burguesia industrial, enfim, rompe-se completamente tal unidade orgânica de política e economia: a classe capitalista fabril dirige efetivamente o processo produtivo e a atividade econômica, organizando a divisão do trabalho na fábrica e gerindo sua empresa no âmbito da divisão social e internacional do trabalho.
A extração do excedente econômico, a mais-valia, reveste-se de natureza puramente econômica, pois a burguesia industrial guarda a posse dos meios de produção, ao dirigir diretamente o processo produtivo. A proteção e garantia social da posse dos meios de produção de capital pela burguesia industrial, no entanto, realiza-se por meio de função diversa da direção da produção, vale dizer, diversa da posse do capital industrial: faz-se por meio da violência pública e estatal.
Posse e proteção da posse dos meios de produção passam a ser funções distintas, isto é, a extração econômica do excedente pela burguesia industrial distingue-se da proteção da propriedade do capital desta mesma burguesia pelas forças públicas do Estado: rompe-se então a identidade imediata entre Estado e classe dominante, característica do medievo ocidental.
Cumpre aduzir que tal Estado burocrático-militar, que se desincumbe da função de proteger e garantir socialmente, por intermédio das forças públicas, a posse e a propriedade do capital pela burguesia fabril, não foi inventado por esta classe social: historicamente, a burguesia industrial deparou-se, em seu nascedouro, com o já desenvolvido aparelho estatal burocrático-militar, radicado em arcabouço tributário-fiscal público distinto da renda feudal privada. A história da formação deste aparelho estatal remonta à denominada Idade Moderna, em que avulta a figura do Estado absolutista.
O que importa reter, por ora, é que a burguesia industrial, por seus próprios atributos, não se confunde com o Estado, como ocorria com a classe nobiliária armada. Mas ela necessita da proteção deste Estado para garantia social de sua posse e propriedade dos meios de produção. Ora, tal disparidade resolve-se mediante a consecução de representantes da burguesia industrial na direção deste aparelho burocrático-militar. Daí o conceito de “representação política” e de democracia representativa eminentemente burguesa.
Impende sedimentar que a direção do aparelho estatal e a direção do processo produtivo industrial consistem em funções socialmente distintas, ainda que um mesmo indivíduo possa desincumbir-se a um só tempo de ambas.
Para arregimentar seus virtuais representantes na direção do aparelho burocrático-militar do Estado, a burguesia industrial organiza-se em partidos políticos, instituições de conformação bastante recente e praticamente inexistentes em períodos anteriores à irrupção da democracia representativa de extração burguesa.
Asseveramos há pouco que a burguesia industrial não inventou o Estado burocrático-militar, com exército permanente e fundado em tributo nacional público, mas que, ao contrário, deparou-se historicamente com seus alicerces já devidamente delineados no Estado Absolutista ainda sob o pálio da nobreza. Foi esta classe social que, ao arrostar a tendência declinante de sua renda feudal, decorrente da tão paulatina quanto inexorável monetarização desta, tomou as rédeas da constituição do Estado Absolutista do Renascimento, ao menos na opinião de determinada cepa de historiadores, entre os quais se destaca o nome do já decantado Perry Anderson.
Todavia, este itinerário histórico parece ter sido percorrido mais emblematicamente no continente europeu do que na região insular britânica.
Com efeito, se o caso inglês oferta-nos o exemplo de Estado feudal mais politicamente coeso e centralizado, a ponto de ter investido militarmente no continente com uma pujança sem êmulos, como no caso da campanha da Guerra dos Cem Anos em território francês, o Estado Absolutista britânico, ao contrário, apresenta ao estudioso da história o molde mais desmilitarizado, burocraticamente rarefeito e menos longevo da Europa ocidental.
Basta observar que, enquanto a França já dispunha no século XVI de um imposto nacional (a talha) e um exército permanente (encetado com as compagnies d’ordonance), a Inglaterra somente viu nascer seus soldados profissionais no século XVII precisamente com o advento do Exército de Novo Tipo, ou New Model Army, radicado em imposto nacional sobre o consumo.
A explanação de tais idiossincrasias do caso britânico talvez consista na constatação de determinada cesura na classe nobre da Inglaterra.
Sem embargo, no curso do século XVI europeu, a revolução inflacionária dos preços, deflagrada pela vaga dos metais preciosos vindos de ultramar, provocou declínio relativo da renda feudal nobre. Na Inglaterra, a grande aristocracia do norte aferrou-se a suas tradições feudais e, durante a década de 1530, beneficiou-se de uma reforma administrativa empreendida pelos Tudor, por meio da qual parte de seus membros passou a ocupar cargos na nova estrutura burocrática constituída pelo Conselho Privado, pela Câmara Estrelada, pelo Tribunal de Alta Comissão e quejandos. Os Tudor mantinham tal aparato não com um tributo nacional à moda francesa, mas com a venda de monopólios sobre dados artigos e sobre o comércio exterior, bem assim com empréstimos compulsórios e confisco de terras eclesiásticas.
Mas no sul da Inglaterra uma pequena e progressista nobreza, a denominada gentry, não enveredou pelo parasitismo do Estado e passou a dedicar-se com mais vigor à produção de lã para a auspiciosa indústria de tecido voltada para o mercado interno e externo. Tal inserção da gentry no âmbito da circulação de mercadorias está na raiz dos famosos cercamentos, ou enclosures, tão ressaltados por Marx em O Capital. O entrelaçamento dos interesses econômicos dessa nobreza progressista do sul com a burguesia manufatureira e comercial afigura-se óbvio, até mesmo porquanto uma parcela de seus membros guardava origem burguesa, tendo ingressado na gentry mediante compra de terras confiscadas e títulos nobiliárquicos.
Os mencionados cercamentos típicos do século XVI são acompanhados na Inglaterra pela difusão coetânea da grande manufatura têxtil na zona rural, longe dos óbices à sua expansão inerentes aos rígidos regramentos das corporações de ofício das cidades maiores. Destarte, tal época viu medrar em solo britânico o assim denominado “sistema doméstico” de manufatura têxtil, ou putting-out system, revelador do vigor da indústria de tecidos de lã desse país.
A dinastia Stuart, como é cediço, procurou acentuar seus poderes e incrementar o parasitismo da grande aristocracia feudal do norte mediante uma série de medidas: extensão dos monopólios, inclusive para abroquelar os tecidos, no chamado projeto Cockayne; expansão dos empréstimos compulsórios; instituição de um imposto de caráter nacional, o designado ship money, que em 1637 John Hampden recusou-se a pagar e foi por isso exemplarmente punido, tornando-se uma espécie de mártir. Tais medidas funcionaram com estopim da crise entre a monarquia e o parlamento ingleses, no início da década de 1640, que culmina na deflagração da guerra civil em 1642.
A guerra civil inglesa de 1642 a 1649 demarca em campos opostos duas forças militares bastante representativas das duas tendências históricas em confronto numa época de transição do feudalismo para o capitalismo: de um lado a cavalaria realista organizada pela grande aristocracia de jaez feudal e, de outro, o Exército de Novo Tipo sob a batuta de Oliver Cromwell.
Ainda uma vez, volto a exorar concessão para reproduzir in verbis um excerto de obra historiográfica, desta feita um entrecho do historiador Christopher Hill acerca deste New Model Army.
Eis o que ele obtempera: “No sentido militar a guerra foi ganha pela artilharia (que só o dinheiro podia comprar) e pela cavalaria de Cromwell constituída por pequenos proprietários rurais. Sob o comando do Príncipe Rupert, os cavaleiros realistas atacaram com energia e destemor, mas eram completamente indisciplinados e desintegraram-se para se entregarem à pilhagem logo após o primeiro ataque. Na guerra como na paz, a pequena nobreza feudal não podia resistir à perspectiva de saquear. Ao contrário, a disciplina dos cavaleiros mais humildes de Cromwell não tinha falhas, porque era auto-imposta. Graças à absoluta liberdade de discussão existente no exército, ‘sabiam pelo que lutavam e amavam o que sabiam’. Assim, atacavam na altura devida, só fazendo fogo no último momento, voltavam a formar e a atacar, até o inimigo ser vencido. As lutas do Parlamento foram ganhas devido à disciplina, unidade e elevada consciência política das massas organizadas no Novo Exército Modelo. Uma vez devidamente organizado e pago com regularidade, dotado de um comissariado e de técnicas eficientes, e com Cromwell nomeado chefe indispensável, o Novo Exército Modelo avançava rapidamente para a vitória, e os Realistas foram definitivamente derrotados em Naseby (1645)”
Com a promoção interna por merecimento e não por nascença, profissionalizado e sustentado regularmente por novo imposto nacional incidente sobre o consumo e aberto à livre discussão e dabates entre seus membros para definição dos objetivos bélicos e da disciplina de caserna, o exército de novo tipo de Cromwell é de fato o embrião do novo Estado democrático de extração burguesa: ele traz em seu âmago elementos de uma nova sociedade burguesa e industrial em gestação, representada pela gentry associada aos setores ligados à manufatura têxtil.
Ao contrário do que se verificou no continente, a burguesia insular inglesa não se deparou historicamente com um grande Estado burocrático-militar já devidamente estabelecido e impermeável à sua influência, como sucedeu, verbi gratia, na França. A ela própria coube a tarefa histórica de constituir o exército permanente de um Estado já poroso à sua ingerência e direção por intermédio de institutos da democracia representativa.
Não por acaso, na esteira deste Exército de Novo Tipo e do Parlamento revolucionário constituíram-se verdadeiros proto-partidos políticos que emulavam pelo controle e direção do novo Estado que se anunciava. Os realistas, os presbiterianos, os independentes, os levellers, os diggers e outros tantos grupos ulteriores, como os ranters e os seekers, podem ser subsumidos na categoria histórica de embriões dos hodiernos partidos políticos institucionalmente vinculados à democracia representativa burguesa. A importante agremiação dos levellers, por exemplo, esgrimia uma democracia representativa radical para a época, brandindo o voto universal masculino nas eleições parlamentares.
Enfim, à guisa de conclusão, sustentaríamos que o Exército de Novo Tipo consistiu, durante a guerra civil inglesa, no embrião da novo Estado democrático-representativo britânico, guardando em seu bojo ou sob sua influência inclusive os germes dos futuros partidos políticos devidamente institucionalizados.
Estas são as ligeiras hipóteses de trabalho que pretendíamos suscitar. Obviamente, sua conformidade interpretativa está sujeita à verificação de estudos empíricos mais aprofundados. Mas, de qualquer maneira, ei-las lançadas ao vento.
Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador e advogado, procurador federal da Advocacia-Geral da União, é graduado em história pela USP e em direito pela Universidade Mackenzie.
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