sexta-feira, 16 de agosto de 2019

IMPROMPTU NÚMERO 1 OPUS 90 DE FRANZ SCHUBERT

A beleza de um oásis é tanto mais aguda quanto maior é o deserto que o circunda.

Repentinamente, em meio ao deserto da repetição, exsurge a mais bela linha melódica já concebida pela inventividade humana.

Estamos no universo da música, arte das musas, essas entidades inspiradoras engendradas pelo gênio clássico grego, e o que importa, então, é sucumbir ao deleite estético provocado por este improviso.

Eis que a perfeição reside não na completude, mas no infinitamente inconcluso.

(DE LUIS FERNANDO PARA MARCIA CLAUS)
  

terça-feira, 13 de agosto de 2019

KAZUO OHNO, SOMOS TODOS IMORTAIS!

Na constelação da história humana, algumas estrelas brilham mais intensamente, mas todas cintilam.

Kazuo Ohno foi uma estrela que cintilou resplandecentemente, iluminando o mistério da morte e o sonho da imortalidade.

Na sintética expressão do professor Irion Nolasco:

"Em alguns momentos do espetáculo não se vê mais Kazuo Ohno, mas o fantasma que ele anima. De certa forma, Ohno dança desafiando a morte e chega a uma relação tão próxima, íntima e desesperada com ela, que acaba adquirindo o rosto de sua adversária. Rude, essencial, espontâneo, o Butoh se apõe tanto às formas de dança tradicional japonesa como à dança ocidental. Seu princípio fundamental é o desejo de aniquilar o corpo, de torturá-lo, para que ele possa revelar sua verdade. A carne é negada para ressaltar a tensão do espírito"

Kazuo Ohno divisa a imortalidade e busca seus antepassados por intermédio da espiritualidade, da alma, dissimulando a matéria, com produzir transcendente epifania estética. 

Mas eu, particular e humildemente, na condição de materialista histórico, devo destacar que somos todos imortais, não pela espiritualidade, mas pela prática materialmente considerada.

Na produção e reprodução de nossa vida material, nós humanos transmitimos às gerações vindouras, pelo trabalho e pela atividade sexual, o legado da perpetuação das sociedades, e vivemos nestas gerações vindouras assim como elas vivem em nós, pois o indivíduo humano não é fruto apenas de seu tempo, mas do passado que o produziu, pois, como diria o velho Mouro, "a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos".

Somos imortais, por conseguinte, não individualmente, mas na continuidade do tempo histórico, da história das sociedades humanas.  

Destarte, podemos agora deduzir, contra a convicção sintética do professor Irion Nolasco, que o Butoh de Kazuo Ohno constitui uma arte que revela a imortalidade da matéria pela prática sensível da dança, vale dizer, sua perenidade situa-se no mundo empírico dos movimentos corporais esteticamente coordenados, por mais espiritual que isto possa parecer.

Vale observar, por derradeiro, que as estrelas também morrem, e toda a pompa e toda a glória da história humana deverão também perecer.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)

                 
  


     

domingo, 4 de agosto de 2019

TODOS OS NOMES

O título em epígrafe pertence a um romance extraordinário concebido em 1997 pela imaginação do mestre inequívoco José Saramago, e sua lembrança me foi evocada quando eu contemplei a interessante película que constitui a versão cinematográfica de outro romance, este denominado "The professor and the madman", cujo autor é Simon Winchester.

Tal filme narra a história da elaboração da primeira edição do titânico dicionário Oxford da língua inglesa, e o que mais me atraiu a atenção nele foi a forma em certa medida descentralizada mediante a qual esse repositório lexicográfico foi conduzido, a saber, com a participação ativa de cidadãos de todas as partes do assim designado "império britânico", os quais encaminhavam por carta, endereçada ao editor, suas contribuições letradas ao dicionário em construção.

Ocorreu-me então que a internet teria acelerado exponencialmente a confecção do dicionário, e tal ocorrência conduziu-me por seu turno a uma ideia que eu já suscitara no conto de minha autoria intitulado "Os plebiscitários", constante deste "blog", a saber, que, numa eventual futura sociedade comunista de economia planificada, todos os produtores e consumidores, todos os nomes conectar-se-iam via internet a uma inteligência artificial centralizada, responsável por coadunar oferta e demanda econômicas a nível mundial. 

Neste caso, com quem está a palavra: o professor ou o "madman"?

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)   

O LOUCO

O Louco


            Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim:

            Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”
            Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim.
            E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
            Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!”
            Assim me tornei louco.

            E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.

(POR GIBRAN KHALIL GIBRAN)

segunda-feira, 22 de julho de 2019

SEIS DIVAGAÇÕES SOBRE HISTÓRIA COMPARADA


SEIS DIVAGAÇÕES SOBRE HISTÓRIA COMPARADA

  1. De proêmio, tanto na Antiguidade como no Medievo, temos uma classe aristocrático-militar que não trabalha e que nutre sua existência material mediante extorsão de uma parcela da produção social realizada pelos trabalhadores rurais (um “excedente econômico”, por assim dizer) mediante a violência.
  2. No entanto, os escravos antigos são mais espoliados que os servos medievais, o que se observa na maior opulência material da classe aristocrático-militar da Antiguidade ocidental, máxime do Império Romano, indício de que o consumo improdutivo de tal classe improdutiva antiga era comparativamente maior do que o consumo improdutivo da classe nobre medieval.
  3. Nesse diapasão, à classe servil medieval era factível investir produtivamente certo excedente econômico que lhe restava após o desconto da corveia, de que resultou o florescimento de um comércio e uma produção artesanal que puderam prosperar comparativamente mais do que o comércio e o artesanato antigos, fomentando as bases materiais do ulterior modo de produção capitalista.
  4. Cabe aduzir que na região onde os servos da gleba exibiam maior liberdade econômica em relação à nobreza medieval, no atual Reino Unido, tais bases materiais cresceram mais rapidamente do que no restante da Europa, favorecendo portanto a eclosão da Revolução Industrial do século XVIII naquelas plagas.
  5. Com o advento do modo de produção capitalista, exsurge uma classe burguesa industrial que, sem produzir diretamente, administra, porém, por meio de sua propriedade privada e posse direta dos meios de produção, o trabalho da classe produtora operária, dela extorquindo um excedente econômico, a mais-valia, que é em parte consumido produtivamente, enquanto outra parte é incorporada ao consumo improdutivo tanto dessa burguesia industrial quanto da classe integrante de um novo estamento improdutivo que constitui o Estado burocrático-militar capitalista, sendo certo que esta parte do consumo improdutivo estatal identifica-se com o novo arcabouço tributário mantenedor de tal classe burocrático-militar.
  6. Um exemplo histórico peculiar de como o excedente econômico produtivamente reinvestido proporciona uma desinibição mais célere das forças produtivas seria o caso observado na Guerra Civil do século XIX, nos atuais Estados Unidos da América: o sul escravista, em que praticamente todo o excedente econômico era improdutivamente consumido pela aristocracia rural, não foi capaz de derrotar militarmente o norte da pequena propriedade privada dos meios de produção, onde o excedente econômico era reinvestido produtivamente por tais pequenos proprietários livres de obrigações servis ou escravistas, de que resultou uma atividade industrial pujante que mais tarde se firmaria como a maior potência econômica no mundo. (por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)

quinta-feira, 2 de maio de 2019

BREVÍSSIMA CONJECTURA SOBRE ACELERAÇÃO DO TEMPO

Parece-nos que, assim como acontece com a gravidade, vigora uma lei consoante a qual à medida que o tempo histórico avança, a velocidade dos acontecimentos e das transformações históricas aumenta: considerando, verbi gratia, o desenvolvimento tecnológico, resta fácil constatar que a sociedade hodierna, sob o aguilhão do capital, impulsiona transformações e melhorias técnicas com velocidade impensável no período que Karl Marx denominaria antediluviano, a saber, anterior ao advento do capitalismo, máxime a partir da revolução industrial inglesa do século XVIII.

Parece-nos, outrossim, que com os indivíduos sucede, grosso modo, o mesmo no que pertine à percepção do tempo: com efeito, à medida que envelhecemos, temos a impressão de que o tempo escoa com maior velocidade.

Eu ousaria arriscar uma conjectura para explicar tal sensação individual de aceleração do tempo:

Ora, a percepção do tempo para o indivíduo depende do lapso temporal que ele já viveu, de tal sorte que, quanto mais idoso o indivíduo, mais veloz parece-lhe escoar o tempo, vale dizer, mais velozes parecem-lhe os acontecimentos.  

Tentarei ilustrar esta conjectura com um exemplo bastante singelo: para uma criança de dois anos de idade, viver mais um ano significa acrescentar mais 50% do seu tempo de vida, ao passo que para uma pessoa de, digamos, cem anos de idade, viver mais um ano representa acrescentar apenas mais 1% do que já viveu; portanto, para o indivíduo, o tempo que acrescenta à sua vida é proporcionalmente cada vez menor e, destarte, parece mais veloz, parece escoar mais rapidamente.

Restaria examinar se há, então, certa mímese entre a velocidade de escoamento do tempo histórico e a do tempo individual, mas isto deixarei para outra publicação neste blog. 

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

sexta-feira, 22 de março de 2019

BREVÍSSIMA CONSIDERAÇÃO SOBRE O CAPÍTULO PRIMEIRO DE "O CAPITAL" DE KARL MARX

BREVÍSSIMA CONSIDERAÇÃO SOBRE O CAPÍTULO PRIMEIRO DE "O CAPITAL" DE KARL MARX.

Se considerarmos a demanda econômica como conjunto das necessidades humanas concretas, concernentes aos valores de uso das mercadorias, então é factível aduzir que o problema da dissociação entre oferta e procura, a saber, entre produção e consumo (ou circulação) já se encontra implícito no capítulo primeiro do livro primeiro de O Capital de Karl Marx, que versa sobre a mercadoria, o que apenas confirma a grandiloquência do pensamento crítico desse autor.

Com efeito, no duplo caráter da mercadoria como valor de uso e valor já reside, respectivamente, a dissociação entre demanda e oferta: ora, a oferta no capitalismo guarda como escopo tão somente a obtenção de mais-valia, isto é, a valorização de valor, sem qualquer consideração com a demanda concreta por valores de uso, nos termos acima, dissociação esta que induz à possibilidade de crises recorrentes típicas do caos econômico ínsito ao modo de produção capitalista. 

(POR LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)