A
URDIDURA DO TAPETE
Por
Luís Fernando Franco Martins Ferreira
Para
Marcia, com amor, sempre.
“É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar”
(Dorival Caymmi e Jorge
Amado)
Envolto e embriagado pela tão lancinante quanto singela poesia da canção
em epígrafe, o circunspecto B, com suas sobrancelhas já grisalhas por mais de
meio século de uma existência parcialmente estigmatizada pelas afecções da
alma, encetou a obtemperar acerca da extinção por asfixia, e o curso de suas
elucubrações foi então arrebatado pela reminiscência de sua tenra infância nos
idos da década de 1970, quando ainda padecia, lamentavelmente, de graves
episódios de asma cuja etiologia alérgica associava-se, decerto, aos cuidados
extremos de uma maternidade marcada pelo amor incondicional, parecendo lícito
ventilar que esta hipótese diagnóstica, todavia, exibe-se carecedora de evidência
irrefutável, porquanto consistente em mera conjectura leiga consoante a qual o
sistema imunológico pode descompensar pela ausência de exposição mínima a
agentes patológicos nos momentos iniciais da história individual, de tal sorte
que, malgrado a inspiração do exímio poeta já aludido, a suposta doçura do
óbito por insuficiência respiratória parece existir somente como oxímoro e
metáfora, pois a sensação de falta de oxigênio, seja no mar ou em terra firme,
como experimentara B em diversas ocasiões maculadas pela crise asmática, não
guarda rigorosamente nada de edificante, mas, ao invés, ostenta tamanha
intimidade com a dor e a agonia que a expressão literária sofreria para descrevê-la
de maneira conveniente.
No entanto, como atinava B, o sofrimento provocado pela asfixia asmática
podia ser cotejado, em intensidade, com outra espécie de pathos que,
circunscrito, todavia, ao âmbito do pensamento, parecia-lhe tão agonizante
quanto a falta de ar, a saber, o temor de respirar, de sorver pelos pulmões o oxigênio
tão abundante no ambiente quanto imprescindível à manutenção da existência, e,
nesse particular, B recordava-se enfática e pormenorizadamente do terror que
lhe inspirara o surto de meningite que assolou sua cidade natal nessa mesma
década de 1970, cabendo assinalar que tal fobia por microrganismos suspensos na
atmosfera derivava com efeito dos relatos que lhe chegavam, diariamente, acerca
de um parente não muito distante acometido por esta infecção da meninge e cuja
higidez tinha sido severamente comprometida por tais entidades devoradoras de
cérebro, algo tão assustador que determinava um pânico bem estruturado na
imaginação do nosso protagonista.
Mas nem só de asma e hipocondria nutria-se a infância de B, pelo
contrário, eis que, sob perspectiva hodierna, tal fase de sua vida
apresentou-se de uma riqueza lúdica sem paralelo com a época corrente, em que
os infantes consomem seu élan vital na solidão dos jogos eletrônicos diante de
aparelhos celulares e computadores pessoais, enquanto B e seus amigos de bairro,
entre os anos 1970 e 1980 da era cristã, divertiam-se coletivamente nas ruas da
vizinhança mediante jogos e brincadeiras ao ar livre que, em grande medida,
estiolaram-se ou simplesmente já não mais existem, tais como corridas de
carrinho de rolimã, jogo de taco, futebol de botão, futebol no meio da rua,
voleibol idem, pega-pega, esconde-esconde, bolinhas de gude, pipas, ping-pong na mesa de jantar, corridas de
bicicleta, desenvolturas em cima de skate, jogo de “stop”, bandas de rock de
garagem, e muitas outras formas de diversão, entretenimento, esporte e
socialização atualmente impraticáveis, sendo relevante registrar que a casa de
alguns desses coleguinhas de infância convolara-se em verdadeiro playground
para a criançada dessas paragens, graças à generosidade da respectiva família
que concedia sabiamente mais valor à boa desinibição dos jovens do que à
arrumação da residência, a qual contava inclusive com um sótão de aura mágica e
mística onde se instalava uma farta biblioteca e onde a moçada amiúde celebrava
reuniões sigilosas do clubinho secreto das adjacências.
Nada obstante, foi precisamente nessa biblioteca de sótão, quando ainda
criança, que B sofreu seu primeiro surto psicótico ao deparar-se
involuntariamente com uma figura antropomórfica do diabo que ilustrava uma
bíblia sagrada católica, surto esse que deflagrou nova onda fóbica agora
direcionada para a possessão demoníaca, um pavor inafastavelmente duradouro de
ter a própria mente dominada por alguma forma de entidade maligna apta a
conduzir sua alma até as sombras do inferno.
Anotou-se, desde então, o decurso de vinte longos anos de relativa
calmaria até que um episódio maníaco de intensidade mais severa perturbasse a
já sinuosa trajetória de vida da solene figura de B, e desta feita o estado
crítico exsurgiu em roupagens gravemente paranoicas que denotavam certo narcisismo
endógeno da sua quase inescrutável personalidade, o que o conduziu finalmente a
procurar auxílio psiquiátrico mais incisivo, de que resultou a prescrição
médica de determinado fármaco psicotrópico muito adotado, mas que acabou por
provocar-lhe efeitos colaterais de considerável importância, mais
especificamente conhecidos pela locução
“acatisia”, a saber, um transtorno caracterizado por inquietação psíquica e
motora que produz no paciente movimentos incontroláveis, tais como deambulação
sincopada e roboticamente estilizada, um desconforto orgânico muito intenso
acompanhado por turbilhão inexorável de pensamentos desconexos, praticamente insuportável,
o qual culminou na internação parcial de B em nosocômio apropriado para
enfermos dos nervos.
Ele não tinha como saber, mas esta internação quase compulsória em
manicômio não judiciário revelar-se-ia um divisor de águas em sua caminhada por
este mundo tão estranho quanto fascinante.
De fato, após passar pela necessária triagem inaugural da internação no
estabelecimento médico, B foi recepcionado acolhedora e efusivamente, perto da
porta de entrada, por uma moça mui cordial, também paciente do internato, cujo
olhar de azul talássico, malgrado a fugacidade desse encontro furtivo, instalar-se-ia
para sempre no mais recôndito âmago de seu átrio esquerdo, um verdadeiro
vislumbre do paraíso em plena face da Terra por este mesmo B que, na ocasião,
mal conseguia desvencilhar-se de uma tormenta infernal, que não se encontrava
hábil para emergir das águas profundas da insanidade, ou, mais especificamente
falando, que estava próximo de fenecer por asfixia nas verdes ondas do mar
revolto da loucura.
Tal recepção carinhosa, que lhe abriu as portas do manicômio, consistia
decerto em traço sintomático do peculiar microcosmo que aquele logradouro
encerrava, pois B lá deparou-se, muito provavelmente, com algumas das
idiossincrasias mais humanas e interessantes de toda a sua história até o
momento, o que lhe forneceu a convicção consoante a qual a humanidade
demasiada, talvez, indicasse o pecadilho primordial de toda aquela gente
perturbada, composta, verbi gratia, por um rapaz atormentado por certo espírito
de velho africano que discorria por seu intermédio, com voz alterada de
barítono, sobre temas ancestrais do respectivo continente; por uma senhora que
imergira na depressão profunda logo após ter sido milagrosamente curada de
certa cegueira supostamente irreversível; por uma moça que não conseguia
desvencilhar-se do uso obsessivamente ininterrupto dos óculos de sol; por um
senhor que não parava de deambular compulsivamente por ser perseguido por outro
espírito maligno; por uma rapariga que exibia tremores incontroláveis de
etiologia desconhecida; por um jovem artista plástico, intelectualmente
brilhante, cuja nêmesis derivara da experiência da morte de uma colega de
profissão em seus braços; por outro jovem que fugia todos os dias do manicômio,
pulando através dos seus muros; por um esquizofrênico severo que mal se
comunicava e fumava de forma exacerbada, mas que por vezes discorria com muita
propriedade sobre temas religiosos; enfim, uma miríade de figuras e distúrbios
das mais variegadas gravidades e naturezas.
Tal amálgama humano reunia-se invariavelmente em determinados dias da
semana para participar daquilo que se denominava “roda de contos”, em que umas
das psicólogas do internato, exímia profissional, narrava uma história, de
ficção ou não, e depois permitia a intervenção e comentários dos pacientes, um
momento catártico em que se divisava a riqueza das experiências singulares, e
foi provavelmente em uma dessas sessões que B conseguiu atrair, não por seus eventuais
dotes físicos, mas pelo seu cultivado intelecto, a atenção mais acurada da moça
de olhos azuis, que chamarei de C, pois formulara um comentário deveras prestigiado,
combinando as dialéticas de Platão e Hegel, acerca de um conto sobre o cavalo
de Troia, o que despertou em C certa curiosidade que a fez remover os óculos e
lançar seu olhar inebriante em direção a B, que acenou de volta, estupefato.
Outro momento catártico no nosocômio consistia nas sessões de terapia
ocupacional, teoricamente lastreadas nas investigações da festejada psiquiatra
brasileira Nise da Silveira, onde B, cujo acalentado intelecto acabara por
desprover-lhe de qualquer traço de habilidade manual, logrou milagrosamente
urdir com disciplina e perfeição um pequeno tapete de lãs entrelaçadas e
coloridas, uma singela obra-prima para quem jamais esperava ser incentivado a
fazer algo materialmente complexo daquele jeito, enfim, uma conquista, em seu
entender, de inefável contentamento, cabendo destacar que, em uma dessas
sessões, C confessou-lhe que não tinha companhia para comparecer a uma festa
que aconteceria no final de semana seguinte, confissão esta que B redarguiu
incontinenti, colocando-se de total prontidão para acompanhá-la em dito evento,
mas a proposta de B foi prontamente afastada por C, que sugeriu que ele viesse
a ser apresentado à irmã filósofa de C.
Desapontado, B obteve permissão da diretoria do hospital para permanecer
em casa por uma semana, eis que se cuidava de internato apenas parcial, em que
os internos chegavam de manhã bem cedo e partiam no final da tarde.
Mas quando retornou ao nosocômio, o estado de ânimo de B foi
liminarmente recuperado por uma grata surpresa, eis que já era época natalina e
ele sorteou para presentear como amiga secreta, nas celebrações de fim de ano
naquela instituição psiquiátrica, ninguém menos que sua admirada C e, então,
ele quedou convicto de que o universo estava a conspirar a seu favor, de que a
maré, finalmente, lhe era francamente favorável.
E qual não foi seu embevecimento quando pode apreciar uma apresentação,
por C, de dança do ventre durante aquelas festividades de final de ano no
manicômio, um espetáculo revelador da poderosíssima magia sedutora daquela
mulher extraordinária, o que lhe provocou um êxtase sem precedentes e
arrebatou-lhe definitivamente o coração.
Por derradeiro, B deu a C, como regalo de amigo secreto, o tapete que
urdira com tanto carinho nas sessões de terapia ocupacional.
Eles estão juntos até hoje.
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