Na constelação da história humana, algumas estrelas brilham mais intensamente, mas todas cintilam.
Kazuo Ohno foi uma estrela que cintilou resplandecentemente, iluminando o mistério da morte e o sonho da imortalidade.
Na sintética expressão do professor Irion Nolasco:
"Em alguns momentos do espetáculo não se vê mais Kazuo Ohno, mas o fantasma que ele anima. De certa forma, Ohno dança desafiando a morte e chega a uma relação tão próxima, íntima e desesperada com ela, que acaba adquirindo o rosto de sua adversária. Rude, essencial, espontâneo, o Butoh se apõe tanto às formas de dança tradicional japonesa como à dança ocidental. Seu princípio fundamental é o desejo de aniquilar o corpo, de torturá-lo, para que ele possa revelar sua verdade. A carne é negada para ressaltar a tensão do espírito"
Kazuo Ohno divisa a imortalidade e busca seus antepassados por intermédio da espiritualidade, da alma, dissimulando a matéria, com produzir transcendente epifania estética.
Mas eu, particular e humildemente, na condição de materialista histórico, devo destacar que somos todos imortais, não pela espiritualidade, mas pela prática materialmente considerada.
Na produção e reprodução de nossa vida material, nós humanos transmitimos às gerações vindouras, pelo trabalho e pela atividade sexual, o legado da perpetuação das sociedades, e vivemos nestas gerações vindouras assim como elas vivem em nós, pois o indivíduo humano não é fruto apenas de seu tempo, mas do passado que o produziu, pois, como diria o velho Mouro, "a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos".
Somos imortais, por conseguinte, não individualmente, mas na continuidade do tempo histórico, da história das sociedades humanas.
Destarte, podemos agora deduzir, contra a convicção sintética do professor Irion Nolasco, que o Butoh de Kazuo Ohno constitui uma arte que revela a imortalidade da matéria pela prática sensível da dança, vale dizer, sua perenidade situa-se no mundo empírico dos movimentos corporais esteticamente coordenados, por mais espiritual que isto possa parecer.
Vale observar, por derradeiro, que as estrelas também morrem, e toda a pompa e toda a glória da história humana deverão também perecer.
(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)