segunda-feira, 24 de novembro de 2014

FAUSTO

O VATICÍNIO DE “FAUSTO”: RESENHA DO FILME HOMÔNIMO DE ALEXANDER SOKUROV. 
(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

Em sua película intitulada “Fausto”, o realizador russo Alexander Sokurov aborda com um espetáculo visual deslumbrante a lenda ou mito medieval do cientista que vende sua alma ao Diabo em troca do amor carnal com a jovem Margarete, em enredo lastreado no poema homônimo de Goethe.

Cuida-se de obra bastante instigante, que nos remete a algumas reflexões sobre tal mito medieval, cuja exposição pedimos licença para veicular nesta singela resenha.

É cediço que na religião cristã não há lugar para contrato ou sociedade entre Deus e o Diabo, conquanto a Igreja católica medieval exercesse importante ingerência nas coisas terrenas: na verdade, muito embora a religião funcionasse em boa medida como supedâneo ideológico de uma sociedade dividida entre nobres e servos da gleba, o fato é que a teologia, naturalmente, não podia influenciar na produção e reprodução da vida material do ponto de vista técnico.

Ora, no filme em comento, de Sokurov, o Diabo é representado pelo dinheiro na figura de um usurário, enquanto a ciência personifica-se no sábio doutor Heinrich Faust, sendo certo que os dois contratam entre si e tornam-se sócios: conluio entre ciência e dinheiro, eis a fórmula da futura Revolução Industrial que inaugura o capitalismo em sua manifestação mais acabada.

O mito medieval do Fausto pode ser entendido, pois, como um magnífico vaticínio do surgimento da era em que a ciência, por intermédio da técnica industrial que submete o trabalhador assalariado ao capital, convola-se na nova religião socialmente dominante. Aqui, Fausto encontra o Prometeu acorrentado.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

GRIEG, BRAHMS E OS HISTORIADORES

GRIEG, BRAHMS E OS HISTORIADORES

Recentemente voltei a ouvir dois inesquecíveis concertos para piano e orquestra, pelas mãos do solista brasileiro Nelson Freire, a saber: o do compositor norueguês Edvard Grieg, opus 16; e o de seu colega alemão Johannes Brahms, opus 83, de número dois.

Cuida-se de duas peças monumentais, cujas linhas melódicas já integram, por assim dizer, o imaginário coletivo daqueles que apreciam música, seja de qual gênero for.

Arrisco aqui alguns palpites e impressões sobre as mesmas.

A obra de Grieg, em cada um dos seus três movimentos, exibe-se predominantemente como justaposição de temas melódicos, dispostos em blocos estanques e desconexos, o que não remove de forma alguma a beleza embevecida de cada melodia.

Já a peça de Brahms mostra-se bem mais coesa, pois cada tema melódico surge como desenvolvimento necessário do anterior, em uma desinibição processual em que nada é deixado ao acaso, o que acaba por formar um todo sólido e inquebrantável.

Tais impressões conduzem-me a algumas ilações derivadas do cotejo com o ofício do historiador.

Nesse diapasão, quer me parecer que, se Edvard Grieg fosse um historiador, provavelmente estaria atrelado à corrente da assim designada história factual, ou, como dizem os franceses, "histoire evenementielle", a qual exalta os grandes feitos individuais e os acontecimentos mais estrondosos, geralmente do âmbito político.

Ao passo que Brahms seria provavelmente um historiador marxista ou da chamada Escola dos Annales, que se ocupam primordialmente dos processos, a saber, os liames que encadeiam os acontecimentos, colimando estabelecer inteligibilidade na narrativa dos fatos.

Ambas as correntes historiográficas exibem seu encanto e sua beleza, assim como as músicas de Grieg e Brahms, parecendo-me relevante anotar que os músicos, assim como os historiadores, também se ocupam do tempo: no caso dos primeiros, trata-se do som em movimento, do evolver das notas musicais no tempo.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O ELEVADOR

O ELEVADOR

Pedro e Carla compunham um belíssimo e bem-sucedido casal paulistano, cada qual com seus trinta e poucos anos de idade, mas mesmo depois de dez anos de casamento ainda não tinham engendrado prole.

Eles habitavam um prédio de alto padrão no bairro nobre de Higienópolis, no centro da cidade de São Paulo, sendo certo que o seu requintado apartamento de duzentos metros quadrados era o único do trigésimo andar respectivo.

Cuidava-se de uma atipicamente gélida noite de sábado de fins de julho, com os termômetros indicando sete graus centígrados, e por volta das onze horas o casal, que estava sozinho assistindo a um agradável filme romântico, decidiu que a fome dos dois merecia celebração com pizza e vinho tinto.

Quanto ao vinho não havia muito a deliberar, já que sua adega estava bem fornida de tintos Bordeaux, egressos das melhores safras, mas no que pertine à pizza acabaram por decidir que encomendariam uma, inteiramente feita à moda portuguesa, no serviço de entrega do tradicional restaurante italiano do bairro, que os servia desde que se haviam mudado para aquele prédio, há dois anos.

Avençado isto, o problema que se imiscuía agora consistia em: qual dos dois desceria e depois subiria os trinta andares do prédio para buscar a pizza naquela noite de frio suficiente para congelar a medula dos ossos?

Como era costume, resolveram jocosamente a pendência no jogo de par ou ímpar e, dessa vez, a escolhida foi Carla, que foi compelida a vestir um confortável e espesso roupão de cor avermelhada, colimando desincumbir-se airosamente da saborosa, porém árdua tarefa.

A preguiça apresentava-se demasiada, mas quando o interfone tocou, alardeando a chegada do entregador com a encomenda, Carla não titubeou, levantou-se do sofá e dirigiu-se incontinenti ao elevador, já salivando com a imagem, delineada em sua mente, daquela iguaria inventada pelos napolitanos e, quiçá, aperfeiçoada pelos ascendentes lusitanos.

Aquele inverno era, com efeito, de um rigor implacável, e Carla sentia que lhe congelavam as extremidades do corpo, nada obstante o espesso e avermelhado roupão que a protegia.

A descida do elevador demorou os poucos segundos previstos, durante os quais nossa protagonista, que estava só, pôs-se a observar a sua própria e delgada silhueta refletida nos espelhos que cobriam as quatro paredes do recinto, o qual estava equipado com uma câmera, situada em um dos cantos superiores, que captava imagens de seu interior e as emitia diretamente para o monitor instalado na guarita do porteiro.

A distância que separava tal guarita do saguão de entrada do prédio não era de magnitude tão exacerbada, mas para Carla aquele percurso a céu aberto mostrou-se criogênico e úmido, pois também garoava, e ela o transpôs de forma ligeira, quase correndo.

Cumprimentou cordialmente o porteiro da noite, que lhe abriu o portão interno, e logo pôde divisar a sorumbática e escura figura do entregador de pizza sobre uma bicicleta, o qual se apresentava guarnecido de uma vestimenta impermeável e negra que lhe cobria todo o corpo, inclusive a cabeça por intermédio de um capuz largo e apto a fazer sombra sobre a face, a qual restava inteiramente incógnita.

Carla aproximou-se do portão externo, que permanecia fechado, e saudou sem resposta o entregador de pizza, que remanescia com a cabeça abaixada e a face encoberta por sombras, a pouca distância das grades de ferro, do lado de fora. Ela, então, mostrou o dinheiro do pagamento e introduziu sua mão na abertura entre as grades, destinada precisamente a tais tipos de troca com a parte externa ao portão do prédio, para pegar a encomenda.

Já na posse da pizza, ainda quente, Carla lançou um olhar mais atento em direção à figura do entregador, que dessa vez soergueu a cabeça para deixar sua tez à mostra por um curto instante.

O susto de nossa protagonista não foi desprezível, pois o entregador ostentava um semblante lívido exatamente igual à horripilante figura do ator Max Schreck em ação no filme Nosferatu de F. W. Murnau, com suas orelhas e dentes pontiagudos e olhos esbugalhados sob sobrancelhas espessas.

Mas o susto durou pouco, eis que o portador de pizzas imediatamente voltou a baixar a cabeça, escondendo o rosto na penumbra e retirando-se do lugar com extrema rapidez e em total silêncio.

Recobrada, Carla fez um gesto positivo para o porteiro do prédio, que retribuiu com um aceno de mão, desejando-lhe boa noite.

Antes de adentrar o elevador no retorno ao aconchego terno e aquecido do lar, em que o marido aguardava ansiosamente para encetar o banquete de pizza e vinho tinto, a moradora do trigésimo andar ainda se deteve por alguns instantes e voltou-se para trás com o pensamento direcionado para a bizarra figura do entregador, talvez com receio de que ele pudesse, de alguma forma, tê-la seguido até ali. Mas ela estava só, certeza esta que não impediu, todavia, que um certo calafrio lhe trespassasse a espinha dorsal.

Moveu-se finalmente para dentro do elevador, apertou o botão correspondente ao trigésimo andar e as portas respectivas fecharam-se. O mostrador digital do recinto começou então a fornecer o progresso da ascensão, a qual, no entanto, interrompeu-se abruptamente.

De fato, o elevador parou com um solavanco quando o mostrador digital da ascensão indicava o décimo terceiro andar do prédio, e novamente Carla assustou-se, pois seus pés chegaram a despegar-se do piso, tamanha foi a brutalidade do movimento que deteve a subida.

Ela aborreceu-se profundamente com o que estava a acontecer, mas com espírito prático apertou o botão para que as portas se abrissem, e então notou que estava na metade do caminho entre o décimo terceiro e o décimo quarto andares, sem possibilidade de evadir-se.

Pressionou então o botão que lhe permitia comunicar-se diretamente com o porteiro e chamou-o pelo nome, mas ele não respondeu aos apelos cada vez mais desassossegados de Carla.

Conquanto não padecesse de claustrofobia, a incômoda situação exasperou-a e a deixou em estado de quase pânico, pois não conseguia de forma alguma comunicar-se com o mundo exterior ao elevador.

Foi então que descobriu por acaso algo que aliviou um pouco sua tensão: em um dos bolsos do roupão estava o seu telefone celular.

Ora, é cediço que telefones celulares costumam falhar dentro de elevadores, mas isso tampouco deteve Carla na tentativa de estabelecer contato com seu marido pelo aparelho que agora estava em suas mãos.

Malograram, todavia, as tentativas da nossa protagonista, já que o telefone celular realmente não estabelecia ligações dentro daquele recinto.

O desespero, então, estabeleceu-se, e Carla passou a berrar desbragadamente.

Tal cena, tétrica, foi interrompida também abruptamente por um novo e pouco auspicioso evento: as luzes do elevador apagaram-se sem aviso e calaram profundamente a voz estrídula da moradora do trigésimo andar.

Na mais impenetrável escuridão, dentro de um elevador parado no décimo terceiro andar e sem qualquer contato com o mundo exterior, Carla ainda chegou a acalmar-se um pouco e teve a ideia de iluminar o recinto com a luz do telefone celular.

Ao acionar a luz do celular, Carla mirou o espelho à sua frente e então um estremecimento fustigou-lhe alma: a imagem que se descortinava era a do entregador de pizza ao seu lado, com um sorriso cínico nos lábios a mostrar os dentes pontiagudos.

Pedro, no apartamento, começava a impacientar-se, pois já se passavam cerca de dez minutos desde que Carla saíra para pegar a pizza.

Levantou-se do sofá e chamou o elevador.

Quando este chegou ao trigésimo andar e a porta se abriu, Pedro vislumbrou no chão do recinto o telefone celular de Carla e a embalagem de pizza com a tampa fechada.

Abriu a tampa e verificou que dentro da embalagem havia somente um punhado de pedaços de borda de pizza com marcas de mordidas.

Carla nunca mais foi vista.

As imagens gravadas pela câmera do elevador mostravam que ela jamais adentrara o ascensor após ter pego a pizza no andar térreo do prédio.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

"A GRANDE BELEZA"

SOBRE O FILME “A GRANDE BELEZA”, DE PAOLO SORRENTINO.

O cineasta napolitano Paolo Sorrentino tem quarenta e poucos anos, mas aborda a velhice com bastante delicadeza em seu filme “A grande beleza”.

Nessa obra ele dialoga tanto com as religiões quanto com o marxismo, vistos como duas formas antípodas da mesma crença na transcendência.

Em geral, as religiões abroquelam a transcendência mediante a crença em vidas distintas da vida neste mundo, ao passo que o marxismo acredita em um futuro melhor neste mesmo mundo.

Mas o fato é que tanto as religiões quanto o marxismo exibem esse aspecto transcendental, porquanto ambos oferecem-nos uma outra vida, uma outra oportunidade, seja, no primeiro caso, para nós mesmos; seja, no segundo, para as gerações vindouras.

Não me convence, contudo, a hipótese de que esta obra de Sorrentino seja anticomunista ou contra qualquer religião, não se trata disso.

Cuida-se, tão somente, de olhar para esta nossa vida aqui, individual e presente, que acaba irrefragavelmente com a morte, haja ou não outras vidas por aí.

Quando chega a velhice e esta vida aqui está por acabar, quando estamos mais próximos da despedida, a coisa toda pode ficar um tanto deprimente, e as estátuas e monumentos legados do passado apenas nos fazem lembrar que não há apelação contra a morte.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

MEDICINA E HISTÓRIA: ALGO EM COMUM?

Não sou médico, mas historiador e, nessa qualidade, assumo aqui os riscos de falar um pouquinho de medicina. 

Nossa disciplina, a história, ensina a estudar uma matéria bastante interessante: o tempo, a saber, o processo histórico, ou as mudanças e permanências através das eras. 

Sobre isso, o bibliófilo polímata Karl Marx, admirador confesso de Charles Darwin, aventou certa vez que "a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco". Ora, como as formas biológicas superiores não existiriam sem a antecedência temporal das formas inferiores, dessume-se que, inversamente, estas últimas também ensinam sobre o ser humano.

Destarte, estou convencido de que a medicina teria muito a ganhar em excelência científica se adotasse mais amiúde a teoria da evolução das espécies, porquanto o tempo, essa quarta dimensão física, parece matéria essencial de qualquer ciência, sem a qual o pretenso cientista pode claudicar. 

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)