FANTASIA BARROCA
Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira
Dedicado a Valtinho, Manina, Madu e, in memoriam, a Ci
1. Mogno e pedra sabão.
Em sede preambular, exoro, aos eventuais leitores destas páginas de jaez memorialista, encarecidas escusas por encetar o vertente discurso mediante um singelo exercício de digressão metalinguística atinente à peculiar equivalência entre as artes da literatura e da ventriloquia, pois se esta última empresta a voz do ilusionista a seus bonecos articulados de mogno, não é menos verdadeiro que aquela beneficia-se da fértil imaginação do escritor para atribuir alma a suas personagens, de tal modo que se faz mister, com a máxima urgência, que os mais destacados literatos prestem suas contas e paguem devidamente seus emolumentos à decadente confraria dos ventríloquos, a qual, lamentavelmente, subsiste à míngua dos parcos contributos de seus raros associados hodiernos, e isto desde que o telefone celular e a famigerada rede internacional de computadores substituíram o mundo real e analógico das entidades de carne, osso e madeira pelas insípidas e insossas telas de imagens digitais.
Isto posto, é hora de me identificar.
Respondo pelo epíteto de Alcides e tive o grato privilégio da longevidade, eis que, entre os anos de 1909 e 2003 da era cristã, fui galardoado com a honra de desfrutar, com meus coetâneos, de noventa e quatro primaveras neste mundo caudaloso, sendo certo que exerci orgulhosamente o ofício de farmacêutico autodidata, mas me foi também concedida a façanha de poder despertar, como mágico ilusionista e ventríloquo diletante, variegados sorrisos e assombros em semblantes pueris, adolescentes, adultos, idosos e vetustos, veiculando por vezes conforto e esperança onde havia somente rasgos de melancolia.
Ora, o leitor atento perceberá liminarmente que o presente relato não se mostraria exequível sem o concurso de outrem, já que prestei a prévia informação de minha extinção no ano de 2003, quando me despedi peremptoriamente desta vida, o que me obsta, jurídica e materialmente, de formular este memorial, razão pela qual desde logo apresento-lhes meu neto batizado como Luís Fernando, o qual aqui comparece, em consonância com nossa metalinguística precedente, na qualidade de ventríloquo cujo loquaz boneco sou eu mesmo, cabendo divulgar nesta ocasião que este meu fiel e mui amado descendente já veio ao mundo sob a égide, o pálio e as bênçãos de dois titãs da poesia lusitana e universal, a saber, Luís de Camões e Fernando Pessoa, cujos prenomes lhe foram egregiamente atribuídos no ato do registro civil das pessoas naturais, fato que, nada obstante, pouco se amolda ao temperamento deste querido parente, o qual na verdade inclinou-se de forma mais manifesta à prosa cartorial e labiríntica de um Franz Kafka, sendo certo, aliás, que Luís Fernando adotou por ofício a mesma função de causídico da orbe infortunística, tão cara ao exímio novelista de Praga.
Oportuno obtemperar que a arte da prestidigitação e do ilusionismo mágicos, que desempenhei com certa fidalguia por determinado tempo, antolha-se-nos em muito caudatária do mesmo espírito galhofeiro e sardônico que se divisa na obra de Kafka, cuja novela intitulada A Metamorfose rompeu inapelavelmente a crisálida da corrente literária vulgarmente denominada realismo fantástico, mas também conhecida como realismo mágico, parecendo lícito aventar que o abrupto advento, na narrativa desta corrente, daquilo que escapa ao que normalmente acontece na realidade empiricamente observável, constitui traço compartilhado com a mágica dos ilusionistas e prestidigitadores, plena de varinhas que se metamorfoseiam em buquês de flores, de moedas metálicas que afloram de narizes e orelhas de infantes estupefatos e que caem estrepitosamente em baldes prateados, de copos que não descolam de cima de livros repentinamente virados para baixo, de pombos que obedecem aos comandos do mestre e que somem de um lugar para aparecer em outro, de outras varinhas rígidas que derretem ao simples toque de crianças incrédulas, de cartolas de onde emergem coelhos de dimensões incompatíveis com o tamanho do mencionado chapéu, de argolas de ferro desprovidas de lacunas ou furos mas que se interpenetram com grande estrondo para formar figuras geométricas similares à arte cinética, enfim, de tudo aquilo que não soa natural nem corriqueiro, mas que engendra assombro, espanto, risos, gargalhadas, desconfiança e uma portentosa dose do mais puro, honesto, despretensioso e ingênuo entretenimento coroado por ovações que provocam inefável sensação de contentamento e júbilo no respectivo artista.
Já devem ter colocado reparo que a imodéstia pode consistir, muito provavelmente, em certa falha de caráter daquele que vos dirige a palavra, mas humildemente devo esclarecer que, se a mágica detinha morada no mais recôndito âmago do meu átrio esquerdo, o fato é que a ventriloquia exibia o condão de usucapir meu corpo e minha mente da maneira mais avassaladora, completa e regozijante, a ponto de ter sido considerado um dos melhores ventríloquos de minha época em meu país, conquanto tal ocupação tenha representado mero diletantismo em minha longa existência, eis que executava tal atividade amadora apenas nos finais de semana, em apresentações para animar festas familiares da elite da cidade de São Paulo, inclusive como forma de haurir um cabedal extraordinário, embora diminuto, para auxiliar um tantinho no orçamento doméstico de um farmacêutico autodidata cujos rendimentos mal cobriam as despesas decorrentes da manutenção de um lar composto por esposa e quatro filhos, sendo certo, portanto, que posso quedar subsumido na classe social do proletariado, a despeito de jamais ter abraçado com fervor qualquer causa política, seja de esquerda ou direita no espectro ideológico, absorto que estava em prover uma subsistência digna para minha relativamente numerosa família, e malgrado ter sido procurado por entidades político-partidárias e lojas maçônicas que se interessaram, sem lograr êxito, por minha adesão aos seus quadros permanentes, interesse este que talvez fosse decorrente de alguma exposição pública que minha atividade diletante de mágico e ventríloquo tivesse por pressuposto, mas isto não posso asseverar com a devida segurança, configurando mera conjectura carente de confirmação.
Demais disso, ainda no compartimento dedicado à minha identificação, devo observar que fui engendrado, concebido, nascido e criado no logradouro assombrado e mítico conhecido pela alcunha de São João del Rei, na região encantada das cidades barrocas do estado de Minas Gerais, mas por uma ironia do destino não cheguei a travar conhecimento de meu próprio pai, que partiu deste mundo quando eu ainda ostentava idade demasiado tenra para fazer ideia de qualquer coisa, parecendo interessante notar que ele sucumbiu letalmente ao resvalar e cair de elevadíssimo desfiladeiro, em algum dos penhascos tão típicos do lugar, quando pastoreava um rebanho de ovelhas de propriedade de seu patrão, mas muito provavelmente tal acidente laboral deva ter remanescido sem ensejar qualquer forma de indenização à minha querida genitora, dada a precariedade das leis e instituições trabalhistas e previdenciárias na época, sendo certo que minha mãe contraiu segundas núpcias com um senhor muito distinto, conquanto também sem muitas posses, que me tratou como se seu próprio filho eu fosse, razão pela qual sempre o considerei carinhosamente como meu verdadeiro progenitor, e pelo qual minha mãe nutria um amor sincero e honesto, malgrado ela padecesse de afecção dos nervos que se agravou com o curso do tempo, de tal sorte que deste segundo enlace matrimonial não resultaram outros descendentes, o que me conferiu a condição de filho único sobre os ombros de quem ulteriormente, com o passamento deste padrasto, ainda relativamente jovem, restou o encargo de cuidar da mãe doente, encargo este que jamais se convolaria em fardo e do qual me desincumbi com galhardia e airosamente, dados os estreitíssimos laços de afeto e ternura profundos que me atrelavam àquela que me trouxe a lume, de modo que discorrer sobre sua história exibe-se tarefa árida e dolorosa, uma dor lancinante que corrói a medula óssea e dilacera o cerne da alma.
Cumpre anunciar, não obstante a chaga que isso me provoca, que minha saudosa mãe chamava-se Rosa Margarida, e recordo-me muito bem que seu cabelo preso em forma de coque consistia em evidência suficiente de que seu humor estava sob controle, pois, ao revés, quando ela amanhecia com os seus lisos e castanhos cabelos livres e soltos, decerto que o curso do dia seria aterrorizado e chancelado pela sua nefasta afecção nervosa, uma insanidade epidérmica que tempos mais tarde a conduziria ao confinamento em famoso nosocômio psiquiátrico no município de Franco da Rocha, onde ela, literalmente, viria a falecer e ser inumada, eis que morreu na véspera do feriado da Independência e o telegrama que informava o acontecimento não me chegou a tempo em São Paulo, de sorte que quando visitei o dito manicômio, no dia seguinte, revelaram-me o ocorrido com a notável impassibilidade típica dos que cuidam daqueles que não sabem o que fazem aqui na Terra, o que provocou em minha esposa, que me acompanhava na ocasião e estava grávida de minha primeira filha mulher, um surto de risos copiosos e estridentes em um amálgama de incredulidade, nervosismo, tristeza e mesmo alívio, ao passo que eu mesmo fui jogado, estarrecido, em estado de paralisia transitória por um considerável lapso temporal.
Mas tratemos agora de assuntos mais edificantes.
Epifania catártica, eis a locução invariavelmente evocada pela reminiscência da primeira ocasião em que experimentei, aos dez anos de idade aproximadamente, o universo maravilhoso dos circos, um episódio que lograria escavar sulcos profundos e indeléveis na tábua argilosa de minha então incipiente personalidade, cabendo destacar que se tratava de um circo relativamente singelo, montado na periferia da cidade mineira onde nasci, mas com suas extensas lonas de coloração azul e vermelha, bem assim seu carrossel de cavalinhos nas cercanias da respectiva entrada, e com apresentar, como algumas de suas principais atrações, acrobatas, equilibristas, trapezistas, anões, domadores de leões, elefantes adestrados, palhaços, globo da morte, homens bala e, naturalmente, um formidável mágico ilusionista e ventríloquo, atração esta que arrebatou minhas entranhas viscerais de plano, e desde então eu soube que também seria capaz de reproduzir aqueles números de transformações inusitadas, manifestações e desaparecimentos inexplicáveis, pessoas se esquivando de situações de aprisionamento aparentemente inescapável, enfim, tudo o que arrostava acintosamente o comportamento habitual daquilo que se convencionou designar por realidade, mas o maior encanto, obviamente, exsurgiu quando um boneco articulado de madeira de lei começou a se movimentar e a proferir anedotas no colo daquele mágico, isso foi demais para mim, sabe-se lá por que motivo, mas receio que aquele embrião dos vindouros autômatos exercia fascínio por mimetizar os humanos, malgrado ser fabricado por eles com material inflexível e rígido, portanto impermeável à penetração da alma em seu âmago.
Poucos dias depois, sobreveio-me outra epifania catártica, agora por ocasião de uma visita, com meus pais, ao santuário de Bom Jesus de Matosinhos, na localidade de Congonhas do Campo, alguns quilômetros distante de São João del Rei, onde o conspícuo escultor barroco Antônio Francisco da Costa Lisboa, vulgo Aleijadinho, concebeu um proscênio guarnecido por doze estátuas de pedra sabão de grandes dimensões que representam profetas bíblicos, uma obra prima da arte universal declarada patrimônio da humanidade pela UNESCO no ano de 1985, de tal sorte que a visão daquele conjunto ensejou-me uma comoção tal que talvez tenha sido o maior êxtase de minha vida, pois, meninote que era, jamais atinara que se pudesse extrair tamanha beleza de pedra bruta, máxime na estátua do profeta Daniel afagando um leão em seu entorno, que me evocou os domadores de feras do circo de dias antes, e eu comecei a elucubrar que, naquele logradouro sagrado, Deus poderia conceder alma àquela escultura magnífica, malgrado ter sido lapidada em mineral duro e mais impermeável à penetração do sopro divino, portanto, do que a madeira de que eram feitos os bonecos de ventriloquia, mas eis que repentinamente o profeta Daniel de pedra sabão encetou a falar e conversar comigo em voz aveludada de barítono, enquanto meus pais estavam distraídos diante de outras estátuas e não perceberam o que ocorria.
“Menino Alcides, guardo comigo o apanágio de vaticinar sobre o seu destino, pois ambos somos rebentos, como o mestre artesão que me lapidou e me dotou de animação e de fala mediante o sopro que faz viver a pedra, das montanhas destas paragens, por isso você conferirá vida ao mogno, com duas figuras mitológicas das Minas Gerais, um menino de corpo inteiro e olhos esbugalhados com lábios proeminentes, bem assim uma cabeça, desprovida de corpo, de europeu em provecta idade, esta confinada em caixa preta que abre na parte frontal para exibir o pálido e vetusto semblante respectivo, e você portará o milagre de transfigurar, com tais bonecos de mogno loquaz, a tristeza em alegria, a dor em prazer, a velhice em infância, a morte em vida”, ponderou-me o profeta Daniel esculpido em pedra sabão.
2. Parentes por afinidade.
Em rompante de sinceridade de minha parte, cabe revelar que Honorato, meu sogro, encerrava o condão de me deflagrar um irrefreável ímpeto invejoso, pois, ao menos aparentemente, as crianças em geral nutriam por ele mais apreço e afeto do que pela minha própria pessoa, malgrado todo o esforço que despendi para atualizar o vaticínio do profeta Daniel de Aleijadinho, fato que talvez seja devido ao temperamento perenemente jovial e brejeiro do pai de minha esposa, que nunca deixou de se comportar como adolescente gracejador, mas suspeito que o verdadeiro motivo seja o posto que orgulhosamente ele ocupava na maior fábrica de brinquedos do país, o que lhe conferia o privilégio de poder levar as crianças, invariavelmente nos meses de dezembro, em visita ao galpão de tal fábrica onde se situava o mostruário de todos os produtos da empresa, ou seja, uma constelação de bonecas de todos os tipos e roupas possíveis, bem assim de carrinhos de todas as cores e modelos, um embevecimento inigualável para esses infantes, que não economizavam nas demonstrações de sincera gratidão a Honorato, ainda que, na maior parte das vezes, seus pais não tivessem condições financeiras de adquirir para seus rebentos esses objetos produtores de enlevo, apesar dos descontos nos seus preços que se conseguia obter pela ocupação desse meu parente.
Cumpre anunciar que meu sogro exercia o ofício de simples vigilante noturno da festejada fábrica de brinquedos, o que não removia de forma alguma o regozijo dos meses de dezembro para essas crianças, muito pelo contrário, atribuía ao velhinho Honorato certa aura mítica de encantador de imberbes, e suspeito também que meu querido sogro tenha escolhido tal emprego para satisfazer a seu jovial caráter de infante de cabelos grisalhos.
Recordo-me ainda de um tio de minha esposa, o Tio Bié, cujo verdadeiro nome era Gabriel, um próspero aristocrata e abastado fazendeiro da região de Ribeirão Preto, que chegou a estudar agronomia na Bélgica, ou na França, não sei bem ao certo, e cujas colegas europeias certa feita passaram uma temporada em sua propriedade rural, mas não tomaram banho de banheira no lugar, do que dão testemunho e notícia as empregadas do Tio Bié que, conquanto providenciassem água quente para tal finalidade todos os dias, sempre encontravam, debaixo da janela do lado de fora do quarto das mencionadas moças, consideráveis montantes de algodão que exalavam perfume de água de colônia francesa, confirmando certo mito muito propagado entre nós brasileiros sobre a higiene dos europeus, mas o interessante mesmo consiste na história segundo a qual todas as noites, após o jantar, Tio Bié sentava-se, com seus longos bigodes e botas negras de couro com cano alto, em sua cadeira de balanço na varanda da casa da fazenda para fatiar um queijo inteiro, colimando dar de comer aos sapos que compareciam, enormes, às dezenas nesta varanda, cabendo observar que, de acordo com difundida lenda agrária da região, Gabriel chamava cada sapo, individualmente considerado, pelo respectivo nome, sendo certo ainda que, determinada noite, um irmão de minha esposa, Dirceu, com seus quatro ou cinco anos de idade, entrou na sala de estar dessa casa portando em seus braços um desses anfíbios, que apresentava um porte maior do que o dele próprio, causando celeuma entre os presentes, salvo no fleumático Tio Bié, que logo foi ordenando a soltura do sapo Godofredo pelo pequeno Dirceu.
Minha memória registra ainda outra figura marcante, a tia de minha esposa, Tia Lourdes, freira católica e notável educadora montessoriana da irmandade das ursulinas, cujo pseudônimo religioso era Madre Helena, e que também encerrava o condão de me provocar sentimento de inveja, eis que permaneceu entre nós por cento e três verões, desfrutando daquilo que denominava matrimônio com Deus, um amor abstrato e platônico sem dúvida, mas que talvez constitua o segredo de sua longevidade, e o fato é que se cuidava decerto de uma noviça bem rebelde, que visitava os parentes com certa frequência e adorava a companhia das águas oceânicas, chegando a vestir até mesmo trajes de banho, pasmem, quando se encontrava no litoral, e certa feita, em Caxias do Sul, pulou os portões trancados do convento para nele adentrar, já tarde da noite, ao voltar de um passeio, iniciado depois do pôr do sol, com minha filha Manina pelas ruas da cidade, de tal sorte que, percebe-se de plano, as núpcias divinas e o celibato terreno não lhe removeram de todo um certo apreço pelo mundo concreto, malgrado ter sido digna de muito respeito tanto como religiosa quanto como educadora, e sua obra nesta última vertente pode ser hodierna e airosamente conferida no colégio das ursulinas na já aludida cidade interiorana de Ribeirão Preto, cujo prédio, de considerável magnitude, conta até mesmo com um campo de futebol de dimensões oficiais.
3. Cambuci.
Aos dezessete anos de idade, logo em seguida ao falecimento de meu padrasto, desembarquei com minha mãe em São Paulo para me estabelecer em caráter definitivo, trazendo na bagagem três objetos de grande importância, a saber, dois bonecos para ventriloquia, de nomes Peleco e Nicolau, respectivamente o menino de olhos esbugalhados e a cabeça sem corpo de um velhinho de barbas grisalhas confinado em caixa preta, exatamente como vaticinados pelo profeta Daniel de Aleijadinho, bem assim um inspirado e denso manual de medicina popular intitulado por metonímia como Chernoviz, sobrenome de seu autor, datado da época do Império, e logo fui contratado pelo senhor Jaime como empregado em uma farmácia situada no bairro do Belenzinho, mais precisamente na praça da igreja principal desse distrito urbano, onde permaneci por alguns anos até me transferir para o bairro do Cambuci, já que não me acostumara com as idiossincrasias do Belenzinho, razão pela qual compus um singelo sambinha com o refrão “não me dou bem, não me dou bem com as meninas do Belém, não fico aqui, não fico aqui, vou-me embora, vou morar no Cambuci”
Com efeito, foi neste último bairro que eu vim a conhecer Dirce, minha esposa, cujo largo sorriso fazia-me ferver o sangue em êxtase de paixão, e com quem engendrei quatro descendentes que respondiam pelos epítetos de Valtinho, Manina, Ci e Madu, cabendo notar que no Cambuci, reduto historicamente vinculado ao movimento operário em geral e anarquista em particular, finquei morada e raízes em uma ruela, que denominávamos “vila”, composta por treze casinhas térreas geminadas, de aproximadamente oitenta metros quadrados de área construída cada, divididas em sala, dois quartos, cozinha e banheiro situado em um quintal onde, em nosso caso, acalentávamos uma frondosa goiabeira e onde chegamos a criar vários animais domésticos e não tão domésticos, tais como cachorros, gatos, galinhas, gansos, tartarugas, saguis, macacos, pombos, papagaios etc., vila esta que constituía um verdadeiro microcosmo da imigração na cidade de São Paulo, com cidadãos originários da Espanha, Itália, Portugal e Líbano, parecendo lícito aventar que os diversos idiomas respectivos amalgamavam-se com o português em um divertido dialeto que somente a grande família de habitantes da vila saberia compreender.
De fato, os moradores da vila formavam uma grande família que organizava, por exemplo, animadíssimas festas juninas na ruela, ocasiões em que os meninos soltavam balões, as meninas dançavam quadrilhas, os pais queimavam fogos de artifício e as mães preparavam as guloseimas típicas da época, tais como pipoca, quentão, bolo de fubá, paçoca, canjica, arroz doce etc, e eu particularmente providenciava a música ambiente com minha vitrola que tocava discos de vinil bem adequados à atmosfera festiva, parecendo imperioso ainda destacar os trajes característicos constituídos por chapéus de palha, lenços coloridos no pescoço, calças de brim remendadas, camisas de tecido xadrez e vestidos de chita floridos, com rendas e fitas.
Recordo-me ainda que todos os dias dirigia-me, na hora do almoço, até uma conhecida loja de material fotográfico e lentes oftalmológicas situada na avenida São João, já nas proximidades do vale do Anhangabaú, em cujo proprietário, o distintíssimo senhor Floriano, aplicava injeções para controle de determinada comorbidade de que ele padecia, cumprindo ressaltar que provavelmente eu me desincumbisse de tal tarefa com certa excelência, pois este senhor chegou a me oferecer como regalo, no início dos anos 1950, um aparelho televisor da marca Crosley, isso nos pródromos dessa nova tecnologia, ainda dotada de imagens em preto e branco, uma verdadeira maravilha do engenho humano, e eu exibia com orgulho tal aparelho aos demais moradores da mencionada vila do Cambuci, mantendo aberta a minha janela da sala onde ficava tal objeto em pleno funcionamento, janela esta com acesso direto à rua, com provocar destarte considerável aglomeração de curiosos transeuntes em frente à minha casa, nos quais se notavam traços de manifesta estupefação, entusiasmo e arrebatamento causados por aquele pequeno instrumento apto a exibir o mundo em movimento e ao vivo, o que logo me despertou uma singela dose de desconfiança, máxime quando, certa feita, a televisão passou subitamente a mostrar em sua tela a figura de um exímio ventríloquo em ação, cujo nome, salvo ledo engano, era Don Trujillo, e então eu percebi que a disputa entre aquele aparelho milagroso e minha atividade diletantemente artesanal de ilusionista conduziria ao gradativo estiolamento dos meus ganhos de mágico amador, e pronuncio o vocábulo “ganhos” não somente na acepção financeira, mas sobretudo no seu significado mais nobre, consistente na alegria despertada pelos sorrisos e pelas ovações das crianças.
Impõe-se anotar ainda que a vila também desvelava suas assombrações noturnas, cabendo recordar que por diversas vezes os luares do lugar foram estigmatizados por um ébrio contumaz, de nome Joaquim, que frequentemente chegava deveras alcoolizado, já tarde da noite, e deambulava madrugada adentro pela ruela a entoar cantilenas lúgubres com sua voz dissonante e avolumada, fazendo-se escutar por todos os moradores e metendo um temor inafastável nas minhas crianças, particularmente na Manina, que corria para a cama dos pais em busca de proteção, ela que, tempos depois, em determinada noite, foi recebida, ao chegar do trabalho, pelo irmão Valtinho no ponto de ônibus onde costumava desembarcar na avenida mais próxima, ocasião em que, já perplexa pelo inusitado dessa recepção, lhe foi revelada uma vultosa aglomeração de policiais decorrente de um bizarro e trágico homicídio ocorrido na vila, a saber, uma jovem moradora local, com seus dez ou doze anos de idade, fora atingida letalmente bem na fronte, entre os dois olhos, por uma bala de revólver disparada por seu pretendente, também adolescente, que apontou jocosamente essa arma de fogo, de propriedade do respectivo pai, em direção a sua amada quando ela exibiu a palma da mão com o nome dele nela estampado, sendo certo, todavia, que esse galanteador não tinha ciência de que o tambor do armamento estava carregado e apertou o gatilho por engano, fato que não o poupou de ser punido com medida de segurança, nem tampouco do remorso que o acompanharia pelo resto de seus dias, mas anos depois ele viria a contrair núpcias com a irmã da falecida.
Bizarra também foi a noite em que uma senhora, bastante obesa, caiu, não se sabe ao certo por qual motivo, da janela de um prédio, contíguo ao fundo do quintal da minha casa, e foi parar no chão deste pátio, vindo a sofrer lesões graves, eis que a altura da queda não fora desprezível, fato este que ensejou outro comparecimento maciço de policiais na vila e especialmente dentro do meu próprio lar, causando-nos aborrecimento e desconforto por um bom interregno, pátio este que também foi palco de outro episódio pitoresco e excêntrico quando meu primogênito Valtinho, sempre gaiato e quiçá zombeteiro, malgrado ainda imberbe, lá apareceu subitamente com um avantajado cavalo pangaré que encontrara naquelas paragens, aparentemente abandonado, conquanto ainda portando montaria, com provocar certa perplexidade temperada por gargalhadas incontidas, mas o certo é que tal primogênito não logrou êxito no manifesto desejo de possuir tal equídeo com o objetivo de brincar de cowboy com seus amigos da vila, sendo certo que tal exercício lúdico de mocinhos contra bandidos com seus colegas de infância rendeu-lhe certa feita sérios hematomas no nariz proeminente, pois fora amarrado em um poste de luz pelos pés e pelas mãos ao desempenhar o papel de bandido, mas conseguiu desvencilhar-se tão somente das amarras das mãos, o que o desequilibrou e fez cair com o rosto no chão e, se é certo que Valtinho sempre encerrou de fato um espírito deveras galhofeiro, o mesmo acontecia com meu outro filho varão, Valdecir, de alcunha Ci, mas nesse último caso o temperamento também era contaminado por certa irascibilidade à flor da pele, do que dá notícia seu costume de, sempre furtivamente, chutar a lata de lixo de uma das vizinhas da ruela, com quem não simpatizava por ter sido denunciado perante minha esposa por causa de alguma de suas traquinagens.
Nosso lar na vila do Cambuci também foi palco de animadas reuniões de vários integrantes do Clube Mágico Paulista, cuja verdadeira sede instalava-se no prédio do colégio Sagrado Coração de Jesus, situado nos Campos Elíseos e atualmente sob lamentável ameaça de desaparecimento, e era composto de figuras bastante excêntricas, peculiaridade, ao que parece, de incidência endêmica entre ilusionistas, prestidigitadores e ventríloquos, o que não me impediu de estabelecer duradouros laços de sincera amizade com boa parte deles, tais como o carioca Bakito, cujo filho veio a falecer prematuramente em razão de uma bola de futebol que lhe fora disparada contra a cabeça numa partida de várzea, o russo Makarade, cujas histórias de congelamento de orelhas, narizes e demais extremidades corporais pelo clima extremo da Sibéria, combatido com altas doses de vodka engolidas abruptamente, estimulavam a imaginação de todos, o querido Bruno, com seus cabelos ruivos, que morava em cubículo no centro da cidade, o altivo Morgado, vocacionado comerciante que administrava uma rede de vendas de material para mágicos, algo plenamente incompatível com a hodierna era digital, o invulgar Raful de Raful, que colecionava automóveis antigos, o talentoso Sandro, notável pela destreza com as cartas de baralho, entre tantas outras figuras extravagantes desse universo encantado.
Se, consoante adiantado, meu fiel amigo Morgado encerrava vocação para o comércio, o mesmo não sucedia comigo, pois cheguei, por um período razoável de tempo, a ser proprietário de um estabelecimento de natureza farmacêutica em nosso bairro, inicialmente instalado na rua Mesquita e posteriormente transferido para a avenida Lins de Vasconcelos, via arterial do logradouro, mas, movido por uma noção um tanto rara de honestidade imbricada com altruísmo, comprava à vista e vendia fiado, o que logo me conduziu a vender o negócio, ainda que a contragosto, com revelar, talvez, uma certa incompatibilidade entre o espírito comercial e a administração da saúde, parecendo lícito aventar que o mesmo não acontece com o ramo dos negócios de mobília, eis que, na sobreloja dessa farmácia, um simpático senhor de nome Samuel prosperou fabricando e vendendo móveis, ele que invariavelmente se dirigia à minha filha Manina com a carinhosa denominação de “turquinha”, provavelmente em razão de suas delicadas feições típicas de uma certa região do Oriente Médio, e facilitava a troca do nosso mobiliário anualmente com preços subavaliados, sendo certo ainda que, no interregno em que logrei relativo êxito como empresário, pude adquirir uma casa de veraneio no então distante e rural distrito de M’Boi Mirim, nas extremidades da zona sul do município paulistano, para onde nos dirigíamos nas férias por meio de táxi, pois eu nunca me interessei em obter habilitação de motorista de automóvel, ou éramos conduzidos por meu cunhado Eloy, que possuía um carro de grandes dimensões em cujo porta-malas, com a respectiva porta aberta, a criançada ficava e se divertia no trajeto, malgrado a necessidade de descerem deste porta-malas para que a viatura pudesse vencer o Morro do Índio no caminho, sendo de interesse notar que a casa de veraneio contava com quarto e sala bem amplos, cozinha dotada de um delicioso fogão à lenha, bem assim um largo pátio com poço artesanal, banheiro e as instalações da governanta que cuidava do lugar.
Quando me afastei definitivamente dos negócios de comércio de medicamentos, fui reconduzido ao estado de empregado, agora em um laboratório também de jaez farmacêutico, vindo a perceber que, no frigir dos ovos, o universo proletário também guardava suas delícias, nada obstante certa deterioração do conforto material, o que obrigou Valtinho e Manina, os filhos mais velhos, a se submeterem outrossim ao mercado de trabalho, mas a existência permaneceu animadora e emocionante, como na época em que eu adquiria arenque defumado na Mercearia Godinho, na rua Líbero Badaró, e me refestelava com minha família em casa, onde chegava sempre tarde da noite, de ônibus, carregando pedaços de pizza e chocolates “sonhos de valsa”, os quais fazia minhas crianças apreciarem, quase dormindo, mas já na cama.
4. À guisa de conclusão.
A música, arte das musas, sempre exerceu sobre minha alma barroca e católica um poderoso fascínio, talvez pelo fato de se cuidar da mais abstrata das artes, a única que dispensa o sentido da visão para o seu deleite, conquanto compartilhe com a literatura o condão de estimular a criatividade, seja do intérprete da respectiva partitura, seja do leitor da obra impressa, e creio que seria vantajoso para todos se fosse exequível dotar a prosa literária de sons musicais, ou seja, se os livros fossem aquinhoados com músicas neles acopladas, de tal sorte que o leitor pudesse ouvir melodias e acordes no ato da leitura, notas musicais cuidadosamente escolhidas pelo escritor para enfatizar a narrativa, e quiçá em futuro próximo os livros digitais o façam, mas, por ora, como sou um cidadão do século passado, cingir-me-ei a sugerir uma sonata incidental para aquilo que narrarei em seguida, uma peça sonora que o eventual leitor pode colocar para tocar em seu dispositivo apto para tanto, e nesse sentido ouso recomendar o primeiro movimento da sonata Ao Luar de Beethoven, um movimento marcado com adagio sostenuto pelo compositor, algumas das páginas mais solenes e misteriosas do repertório clássico, bastante adequada ao estado de espírito com que, em certa ocasião, retornei, já idoso, a Congonhas do Campo colimando estabelecer novo colóquio com o profeta Daniel de pedra sabão engendrado pelo mestre Aleijadinho, numa fria noite de junho cuja lua cheia insinuava-se intermitente através da bruma espessa que caíra no lugar, e eu efetuei uma genuflexão para suplicar àquela escultura magnífica que conversasse comigo, como fizera outrora.
Mas ela nunca mais me respondeu.