segunda-feira, 2 de junho de 2014

AKI KAURISMÄKI

O glamour nostálgico e conservador de Aki Kaurismäki.


Logo no início da belíssima película “O porto” (no original em francês “Le Havre”, de 2012), o sardônico protagonista Marcel Marx pronuncia misteriosamente algo assim como “O dinheiro circula melhor durante a noite”. A princípio, então, parece que o respectivo diretor Aki Kaurismäki homenageia a figura do revolucionário Karl Marx, certo? Veremos que não.

Com efeito, é lícito aventar que o exímio cineasta finlandês, neste filme, veicula uma crítica velada à sociedade fundada na circulação de mercadorias, na qual as pessoas relacionam-se apenas como vendedoras e compradoras, sem estabelecerem um contato minimamente cordial e humano. Em “O porto”, ao contrário, os pequenos comerciantes das adjacências, a saber, os proprietários da padaria, do bar, da quitanda, etc. nutrem por seus fregueses sentimentos de amizade e solidariedade, de tal sorte que às mercadorias, pasmem, cumpre um importante papel civilizador, ao aproximarem, e não afastarem os cidadãos.

Mas não estamos diante de uma obra engajadamente anticapitalista ou francamente socialista, nem de longe: não há qualquer vestígio do conflito entre capital e trabalho, nem um só trabalhador assalariado (ou “proletário”, como diriam os marxistas), enfim, não se divisa em nenhuma hipótese a classe operária portadora dos ideais revolucionários, conquanto a vida humilde, ou mesmo a pobreza estejam em evidência. Apenas os refugiados africanos sofrem de forma mais direta a violência crua do sistema, sendo certo, aliás, que o problema da imigração constitui um dos únicos indícios de que estamos no século XXI e não em meados do século passado.

Mas a Kaurismäki desagrada o ritmo cada vez mais frenético e impessoal da sociedade capitalista do século corrente, potencializado pela internet, e talvez sua utopia conservadora e nostálgica tenha fincado raízes na glamourosa França dos anos 1950 ou 1960. Sem embargo, o país que tem a cor da fraternidade estampada em sua bandeira foi escolhido a dedo pelo diretor finlandês para mostrar um mundo antiquado, em que os sentimentos antediluvianos de solidariedade e amizade, bem assim o amor desinteressado e incondicional, eram ainda cultivados com delicadeza.

Sua conservadora película é uma ode à fraternidade, e o Marx do filme está mais para a sutil ironia de Groucho e família, ao olhar para a sociedade do consumo de forma cordialmente desdenhosa.

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)