quinta-feira, 9 de agosto de 2018

HIPÓTESE MARXISTA PARA UMA LEI TENDENCIAL DO VALOR

Como cediço, o valor da mercadoria, para Marx, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, mas essa média social, em “O Capital”, restou indeterminada quanto ao espaço e quanto ao tempo, vale dizer, não se atrela tal média social a qualquer limite concreto de ordem espaço-temporal.

Urge, pois, aventar a hipótese de que esta média social é tendencialmente mais ampla no espaço ao longo do tempo, a saber, ao longo da história, conquanto se verifiquem também retrocessos contrários à tendência histórica geral.

Destarte, podemos discernir alguns períodos históricos quanto ao nível concreto em que se determina a média social que estabelece o valor das mercadorias, a saber:

1) Nível local, no âmbito das corporações de ofício, quando predomina a produção artesanal, o dinheiro ainda fica atrelado ao ouro e a circulação de mercadorias é restrita também ao âmbito local;

2) Nível nacional, no âmbito dos Estados-nações mercantilistas, quando predomina a produção manufatureira (com subsunção meramente formal do trabalho no capital), circulação de mercadorias muito restrita ao âmbito nacional e dinheiro ainda em forma metálica de ouro ou prata;
3) Nível nacional ainda, mas com maior desinibição da circulação internacional de mercadorias entre os Estados-nações ditos “liberais”, predomínio da maquinaria e grande indústria (com subsunção real do trabalho no capital) e dinheiro em papel-moeda nacionalmente impresso.
4) Nível mundial, a ser alcançado no comunismo em todo o planeta.


Observe-se que o dinheiro torna-se cada vez mais virtual quanto ao seu suporte material, em razão da gradativamente menor quantidade de trabalho consubstanciada nas mercadorias individualmente consideradas.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

quinta-feira, 14 de junho de 2018

MAIS-VALIA RELATIVA E VELOCIDADE DE CIRCULAÇÃO DE CAPITAL

MAIS-VALIA RELATIVA E VELOCIDADE DE CIRCULAÇÃO DE CAPITAL.

Consoante o disposto no capítulo décimo do livro primeiro de O Capital de Karl Marx, que versa sobre a mais-valia relativa, o capitalista que pioneiramente inova no processo de produção, diminuindo o tempo de trabalho necessário para produzir sua mercadoria, torna-se capaz de vender tal mercadoria por um preço menor que o seu valor, porém maior que o tempo de trabalho gasto em sua produção, o que lhe confere vantagem no mercado. 

Mas essa vantagem dura apenas o tempo de difusão social dessa inovação do processo de produção da mercadoria em comento, pois assim que a nova tecnologia se propaga socialmente, passando a constituir a regra do processo produtivo da mercadoria, o capitalista pioneiro perde a vantagem e passa a concorrer no mercado em igualdade de condições com os outros capitalistas.

Por isso é que, para o capitalista pioneiro, exibe-se importante a velocidade de circulação de capital, pois quanto maior essa velocidade, mais mercadorias a menor preço ele poderá vender no mercado, por ele dominado enquanto sua inovação tecnológica não se difundir socialmente.

Os investimentos em infraestrutura, notadamente em transportes e telecomunicações, aumentam a velocidade de circulação de capital e, assim, fomentam o pioneirismo na inovação do processo produtivo, atuando como móvel do desenvolvimento tecnológico no capitalismo, sendo certo que há evidências de que as revoluções técnicas do sistema estão fortemente relacionadas com os ciclos econômicos de longa duração.

A revolução digital, por exemplo, atuou fortemente no campo das telecomunicações para aumentar a velocidade de circulação de capital. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)

quarta-feira, 23 de maio de 2018

DIONÍSIO, APOLO E SÓCRATES NA MÚSICA.

Em sua magistral obra intitulada "O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo", o filósofo Friedrich Nietzsche encetou uma fecunda distinção entre os impulsos artísticos apolíneo e dionisíaco, colimando demonstrar o renascimento do espírito da tragédia grega antiga no assim denominado "drama musical" de Richard Wagner, mas não parou por aí, pois também deduziu o aviltamento de tais impulsos artísticos pelo racionalismo socrático, que teria ferido mortalmente a arte grega mítica de Ésquilo e Sófocles. 

Nietzsche, decerto, associava o impulso dionisíaco à música e à assim designada "natureza uno-primordial", bem assim o impulso apolíneo às artes plásticas e ao "princípio da individuação".         

Eu ousaria aventar aqui a hipótese segundo a qual na própria música também encontram-se em permanente atividade e dinamismo os elementos encontradiços na arte em geral, a saber, os ingredientes dionisíaco, apolíneo e socrático. 

Com efeito, a dissonância atonal e a indistinção natural e primordial dos sons pode muito bem ser atrelada ao impulso dionisíaco, enquanto as notas musicais individualmente consideradas e melodicamente justapostas acomodam-se perfeitamente ao impulso apolíneo e ao seu "princípio da individuação". 

Já o elemento socrático-teórico, por assim dizer racionalista da música poderia corresponder às regras do tonalismo na teoria musical, que está em constante altercação com a dissonância atonal típica do gênio dionisíaco.

São hipóteses a desenvolver, sujeitas ao crivo crítico.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

segunda-feira, 30 de abril de 2018

O HOMEM AMARELO

O pintor holandês Vincent van Gogh, portador de transtorno afetivo bipolar e obcecado pela cor amarela, fracassou, em vida, em todos os aspectos de sua breve existência: desastroso nos campos amoroso, profissional, financeiro, familiar, etc, ele foi, nada obstante, postumamente reconhecido e consagrado como o mais importante artista plástico de sua época e, decerto, um dos mais relevantes expoentes de toda a história da arte, e quiçá seu ponto culminante - ao menos na humilde opinião do autor que aqui lhes dirige a palavra.

A sua vida é, de fato, de um apelo irresistível ao biógrafo, mas seria factível um exame materialista histórico de sua obra, objetivamente isento?

A questão metodológica, que aqui se nos antolha preambular, consiste no seguinte: em nosso sentir, a aproximação de jaez marxista, como colimamos demonstrar, desvela-se não apenas possível como, sobretudo, absolutamente necessária à averiguação precisa da relevância histórica da arte de Van Gogh.

Limítrofe entre o figurativismo e o abstracionismo, sua obra pictórica representa provavelmente o liame mais significativo, na orbe das artes, da transição entre as formações sociais pré-capitalistas, ou "antediluvianas", e o capitalismo propriamente dito, e, nesse sentido, seu estudo guarda o condão de desnudar relações inusitadas.

Creio que já se postulou, amiúde, ser a pintura abstrata coeva do trabalho também abstrato, aquele apartado dos meios de produção e que serve ao capital para produzir mais-valia, enquanto a arte figurativa amolda-se mais aos períodos históricos que precedem o modo de produção capitalista, máxime ao artesanato, quando o trabalhador ainda possui os meios de produção.

Ora, a obra de Van Gogh exibe-se, no essencial, como a arte de transição por excelência entre essas duas épocas: com efeito, cuida-se do artista que efetuou, e de forma pioneira, a dissociação mais radical entre as cores, notadamente o amarelo, e as figuras ou formas que lhes dão suporte na tela, de tal sorte que os objetos nela representados perdem suas cores naturais e assumem outras que o artista, ao seu alvedrio, lhes atribui artificialmente. 

Mas, a escolha das cores dos objetos seria de fato aleatória para esse artista? O que dizer do predomínio do amarelo na obra de Van Gogh?

Suponho também que já se suscitou que tal predomínio é caudatário de determinado defeito ocular do artista provocado por medicação.

Nada mais falacioso.

O amarelo de Van Gogh é a cor do ouro, vale dizer, do dinheiro por natureza, precisamente o metal que cumpre a função social de representar a quantidade de trabalho abstrato ou o valor das mercadorias. O próprio Karl Marx diria que se trata do metal que, com sua cintilante cor amarela, consubstancia a "gelatina" de trabalho abstrato, de massa disforme de valor, a saber, o próprio símbolo do capital. 

Ao libertar o amarelo-ouro de seus suportes figurativos, Van Gogh na verdade representa no plano pictórico a dissociação entre trabalho e meios de produção, que engendra o trabalho abstrato e sua medida, o valor, por seu turno consubstanciado, como equivalente geral, no dinheiro, no ouro, no vil metal de cor amarela. 

Esse artista genial removeu de suas figuras as respectivas cores naturais e as pintou de amarelo, de ouro, de dinheiro: assim como este se converte em qualquer mercadoria, as figuras e formas das telas de Van Gogh perdem a cor natural e assumem a cor amarela, convolando-se em abstrações, em formas mutuamente conversíveis.

Seria um figurativismo abstrato, ou um abstracionismo figurativo? O que se pode asseverar com certo grau de certeza é que a conversibilidade das figuras amarelas do artista neerlandês reproduz o mecanismo pelo qual, sob o pálio do capitalismo, o dinheiro convola-se em mercadoria e vice-versa, essas "gelatinas de trabalho abstrato", de valor. 

Por derradeiro, se o Mouro de Trier estudou o dinheiro com absoluta falta dele no bolso, o artista holandês também pintou suas figuras douradas sem conseguir convertê-las no vil metal amarelo que tanta falta lhe fez. 

Seria Vincent van Gogh o Karl Marx das artes?

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)                                                                 

domingo, 1 de abril de 2018

NOVAS CONJECTURAS FILOSÓFICAS, OU O MATERIALISMO HISTÓRICO COMO "EXISTENCIALISMO SOCIAL"

Hegel parece ter sido o pioneiro a conferir inteligibilidade à história das sociedades mediante sua lógica dialética, muito embora seu idealismo absoluto tenha atribuído verniz um tanto opaco e irreal aos indivíduos concretos. 

Em sua crítica mordaz a esse pensador, Kierkegaard, no entanto, claudicou, pois se debruçou competentemente sobre a história do indivíduo concreto, descurando, todavia, da história das sociedades e sua lógica dialética.             

Mas a crítica existencialista ao idealismo hegeliano rendeu bons frutos, máxime ao postular que "a existência precede a essência".

Sim, pois o materialismo histórico contido em "A ideologia alemã", de certa forma, adotou esse brocardo existencialista ao expor, ainda que um tanto esquematicamente, a história das sociedades na sucessão dos modos de produção até a vindoura humanidade real sob o comunismo, com a superação de sua fragmentação em classes sociais distintas e em diversos Estados nacionais. 

Nesse diapasão, postularíamos que o materialismo histórico, nos termos acima, pode ser tomado como um certo "existencialismo social" em que existência (isto é, o devir histórico e concreto das sociedades humanas) precede a essência (a verdadeira humanidade, despojada de divisões entre classes sociais e Estados nacionais, mas, ao contrário, mundialmente reunida sob a égide do comunismo).

Nem é por outra razão que o próprio Karl Marx asseverou a certa altura, analogicamente, que "a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco", vale dizer, "as categorias que exprimem as relações da sociedade burguesa, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada (...)"

Nesses casos, a essência somente se evidencia na totalidade do devir, na obra acabada, isto é, na existência, que no materialismo histórico sempre é concreta e diacrônica.

São conjecturas submetidas ao crivo da apreciação crítica.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)     


segunda-feira, 26 de março de 2018

MARIA MADALENA: UM FILME PANTEÍSTA?

O Jesus Cristo do filme "Maria Madalena", de Garth Davis, anuncia e alardeia a chegada do reino de Deus para breve, tanto que seu discípulo Judas interpreta isto como uma espécie de revolução que transformaria a face do mundo a partir da entrada do Messias em Jerusalém.

Mas Judas estava equivocado, e o reino de Deus, como bem percebeu Maria Madalena, reside na verdade ínsito em cada um de nós, como indivíduos, de forma latente, aguardando seu despertar. 

Ora, se Deus está em nós dessa forma imanente, então Jesus pode muito bem evocar e reivindicar sua própria natureza divina, assim como qualquer um o poderia.

Seria então esse filme um panfleto panteísta?

Mas, esperem: parece que o reino de Deus está em nós de forma apenas latente, impondo-se seu despertar, então o problema complica-se um pouco, pois é preciso uma certa "revolução" interna ou espiritual para seu advento. 

Enfim, um filme que nos põe a pensar, portanto um bom filme!

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)                   

  

domingo, 25 de março de 2018

BREVÍSSIMA CONJECTURA SOBRE O RACIONALISMO.

Temos de um lado o racionalismo absoluto de Hegel, para o qual o real é racional e o racional é real, caudatário do solipsismo tipicamente cartesiano; e de outro o determinismo absoluto caro aos estruturalistas, como Lévi-Strauss e Althusser, em que razão e liberdade ocupam espaço praticamente nulo.

A meio caminho desses dois extremos queda a psicanálise de Freud, que divisa o processo diacrônico e dinâmico entre razão e inconsciente, conquanto remanesça adstrito ao estudo do indivíduo. 

Mister se faz, pois, estudar a dinâmica diacrônica da relação social e histórica entre os processos eminentemente inconscientes e estruturais, de um lado, e os processos racionais de outro, sendo certo que o lastro teórico de tal investigação deva ser, por suposto, o materialismo histórico, que descortinou pioneiramente o movimento histórico das ideologias sociais na obra "A ideologia alemã".

Estou plenamente convencido de que, consoante tal lastro teórico, há uma tendência histórica bastante evidente pela qual o pensamento racional vai gradativamente tomando espaço dos processos inconscientes e estruturais, até um determinado momento em que as relações de produção e as forças produtivas apresentarão certo nível de desenvolvimento que permitirá um elevado grau de controle dos indivíduos livremente associados sobre seu modo de produção e seu devir histórico, modo de produção este associado ao advento do comunismo em escala mundial. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)               
              
           

domingo, 18 de março de 2018

"LOUIS ALTHUSSER COMETEU EXAGEROS, MAS ERA UM COMUNISTA SINCERO"

Além do bicentenário do advento de Karl Marx, este ano de 2018 marca o centenário de nascimento do polêmico filósofo marxista Louis Althusser, destacado dirigente do Partido Comunista Francês falecido em 1990, após dez anos de ostracismo intelectual por ter cometido, em 1980, homicídio contra sua própria companheira durante um surto psicótico decorrente de transtorno bipolar, doença então conhecida como psicose maníaco-depressiva, sendo certo, todavia, que este protagonista foi considerado inimputável e internado em manicômio judiciário. 

A obra de Althusser, influente e multifacetada, é geralmente associada ao marxismo e ao estruturalismo, e guarda entre suas características mais evidentes o assim designado "anti-humanismo teórico", pelo qual, grosso modo, examina o processo histórico de forma radicalmente objetiva e desprovida de sujeitos humanos, pois os indivíduos representariam meros vetores de determinações estruturais do capital. 

Meu camarada Lincoln Secco, professor livre-docente de história da USP, certa vez me asseverou, com razão, que Althusser cometeu exageros, mas era um comunista sincero. Eu também acredito nisso, pois podemos divisar, de certa forma, no anti-humanismo teórico desse filósofo uma vereda para o humanismo prático, nos seguintes termos:

Minha hipótese, resumidamente, consiste na ideia de que, em "A Ideologia Alemã", de Marx e Engels, reside o argumento de que, enquanto houver divisão em classes sociais, a "humanidade" somente pode ser um conceito vago e abstrato, ou seja, ideológico, sendo certo que sua realidade concreta somente será efetiva com o advento do comunismo a nível internacional, ou seja, com a extinção das classes sociais e também da divisão política entre países. Logo, o comunismo é que inaugura a humanidade em seu sentido prático e concreto, e os indivíduos deixarão de ser meros vetores de determinações estruturais do capital para desfrutarem da verdadeira liberdade, uma liberdade também prática e concreta. Nesse sentido, o humanismo em "A ideologia Alemã" é um humanismo histórico, prático e concreto, que peleja e luta pela construção da verdadeira humanidade sob a égide do comunismo, quando então os indivíduos concretos associados figurarão como efetivos sujeitos de sua própria história, com desdobramentos inclusive no plano da psique, pois as estruturas objetivas e inconscientes cederão espaço para uma consciência mais abrangente e uma razão mais poderosa. 

Não sei, e obviamente nunca poderei saber, se Althusser concordaria com tal hipótese, mas posso dizer, sem rebuços, que seu anti-humanismo estruturalista inspirou-a de forma bastante dialética, pois resgatou seu negativo na forma de um humanismo bem evidente no jovem Karl Marx e mesmo em "A ideologia alemã"

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)          

domingo, 11 de março de 2018

APONTAMENTOS PARA UM PROJETO DE ESTUDO MATERIALISTA DA PSIQUE HUMANA

Há que se distinguir, no curso histórico da produção e reprodução da vida material da sociedade humana, o trabalho (atividade econômica) do sexo (reprodução sexual).

Nesse diapasão, a atividade econômica, eminentemente social ou coletiva, deve ser estudada consoante as ferramentas conceituais derivadas ou inspiradas nos ensinamentos de Jung e Piaget, notadamente - numa leitura livre de tais autores - o inconsciente coletivo, o indivíduo e o que denominarei "consciência coletiva" ou "razão", esta última relacionada à produção de conhecimento ou ciência.

Já o escrutínio da reprodução sexual, mais restrito aos indivíduos participantes do ato sexual e, portanto, sem o mesmo caráter social da atividade econômica, deve ser lastreado nos ensinamentos de Freud, notadamente as acepções de ego, superego e id. 

O aspecto dinâmico ou histórico do desenvolvimento diacrônico e o entrelaçamento das duas instâncias (trabalho e sexo) deve contar com o elenco conceitual e lógico-dialético do materialismo histórico, pioneiramente evidenciado na obra de Marx e Engels, notadamente em "A ideologia alemã".

Cuida-se de projeto aberto a contribuições de terceiros.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA) 

sexta-feira, 9 de março de 2018

UM ASPECTO DE SADE

Na produção e reprodução da vida material da sociedade humana, faz-se mister considerar seus três fatores constitutivos: trabalho, violência e sexo (ou atividade sexual).

Quanto ao trabalho e à violência, já tive a oportunidade de desenvolver a ideia consoante a qual esta última consiste na antítese da primeira, o que resta evidente nas origens históricas da propriedade privada dos meios de produção, e aqui exoro licença para copiar ipsis literis um excerto do meu texto sobe Marx e Freud publicado neste blog, a saber:        

“No que pertine à gênese histórica da propriedade privada dos meios de produção, no caso, da propriedade fundiária, basta reter, por ora, que seus dois alicerces são: em primeiro lugar, o trabalho, mediante o qual certo grupo ou indivíduo apropria-se de determinados meios de produção delimitados, transformando a natureza em objetos satisfativos de suas necessidades fisiológicas ou espirituais; em segundo lugar, a violência, por meio da qual tal grupo obsta a turbação de sua posse por outros grupos ou indivíduos, privando-os, destarte, da satisfação das respectivas necessidades com tais meios de produção já previamente apropriados. Ora, se na propriedade privada coletiva de meios de produção dos membros das comunidades primitivas, vale dizer, no impropriamente denominado comunismo primitivo, a contradição entre trabalho e violência ainda resta latente, na constituição do Estado escravista antigo ela se desenvolve e engendra, de um lado, uma classe de escravos que só realiza trabalho, figurando também como meio de produção; e, de outro, uma classe aristocrático-militar cuja única atividade consiste em extorquir o produto do trabalho escravo por intermédio da violência. Mutatis mutandis, o Estado feudal guarda a mesma natureza do escravista, distinguindo-se deste apenas de forma quantitativa, na proporção da menor extorsão do produto excedente aos servos da gleba, bem menos espoliados que os escravos”

Decerto, por intermédio da violência, antítese do trabalho, a classe social de proprietários dos meios de produção submete a classe trabalhadora e extorque-lhe o excedente do produto econômico. Porém, a produção e reprodução da vida material da sociedade humana não se adstringe ao âmbito econômico, isto é, ao trabalho dos indivíduos concretos, mas pressupõe também a produção e reprodução desses próprios indivíduos concretos mediante a atividade sexual.

Tal atividade sexual, por óbvio, não se decompõe, como na atividade econômica, em classes sociais distintas que exercem respectivamente o trabalho e a violência, mas bifurca-se em gêneros distintos com funções distintas, a saber, o feminino e o masculino.

Destarte, por um processo de mímese, que cabe ainda estudar com mais profundidade, a atividade sexual frequentemente evoca e incorpora, em atos concretos e imagens psíquicas, a violência e a submissão típicas da antítese do trabalho na atividade econômica. 

Evidentemente, o sadismo consiste no mais acabado fenômeno social e psíquico atinente a tal mímese, sendo certo que o Marquês de Sade foi, até o momento, o mais explícito expoente deste fenômeno no âmbito literário. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)