terça-feira, 23 de dezembro de 2014

DISNEY E WAGNER, ORLANDO E BAYREUTH.

As veleidades utópicas consistem basicamente em negar as lutas de classes sociais: negação prática pela revolução comunista, que implantará no futuro a ditadura do proletariado e a paulatina superação histórica da divisão da sociedade em classes, utopia esta característica dos assalariados pelo capital. O socialismo do tipo soviético malogrou nessa tentativa, pois não alcançou a revolução tecnológica do último quartel do século passado, de sorte que sua experiência poderia ser conceituada como utópica, nada obstante seu pretenso caráter científico. 

Mas há também utopias reacionárias, igualmente infensas às lutas de classes sociais. 

Os parques temáticos da Disney em Orlando, no estado americano da Florida, são um exemplo clássico de utopia pequeno-burguesa. Está bem, reconheço que já visitei pessoalmente tais parques e, pasmem, minha condição social concreta fez-me sentir bem lá, conquanto eu defenda teoricamente o socialismo científico.

Na utopia de Disney, concretizada nos seus parques temáticos em Orlando, todos são, ou podem alcançar, o estado social de pequeno-burguês, numa relação umbilical com a história dos pequenos proprietários que formaram os Estados Unidos da América. A democracia representativa burguesa, nesses parques, é ostensivamente enaltecida: trata-se da negação da luta de classes pela utopia da possibilidade de ascensão social para todos.

Já a utopia de Richard Wagner, concretizada no festival de Bayreuth, exibe caráter mais reacionário, pois seus liames guardam relação direta com a aristocracia Junker. Ora, não é possível que todos sejam grandes latifundiários, pois esse estado social pressupõe a exploração dos servos da gleba, logo a negação da luta de classes somente se estabelece pela força militar de um Estado integralmente dominado por Junkers. 

Não por acaso, a utopia totalitária nazista deve muito ao drama musical de Richard Wagner, conquanto esse compositor nada tenha que ver com o que fizeram posteriormente de sua obra, mas talvez a loucura de Hitler possa ser definida como uma utopia Junker, uma utopia mais radicalmente reacionária, muito ligada ao processo de modernização típico da história da Alemanha, o qual foi conduzido pela aristocracia rural.       

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)          


     

                          

   

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

NEBRASKA

Sugeri neste blog que o filme italiano “A grande beleza”, ao abordar a velhice, pretende-se filosófica e politicamente neutro, restando equidistante do marxismo e do catolicismo, duas forças sociais muito importantes na Itália.

O mesmo não acontece com o filme norte-americano “Nebraska”, do realizador Alexander Payne, também sobre a velhice, pois este é francamente anticapitalista.

Com efeito, o que vemos em “Nebraska” é uma película integralmente lapidada em preto e branco, o que parece realçar a abstração ínsita à forma dinheiro, esse dinheiro, supostamente auferido em um sorteio, tão almejado pelo idoso protagonista quanto inexistente e frustrador.

Nos Estados Unidos arruinado pela crise capitalista, os demais personagens do filme também só fazem cobiçar o escasso dinheiro, na vã tentativa de salvação individual, a despeito inclusive das relações de amizade e de família.

Mas o dinheiro não é a única coisa cobiçada: o automóvel exibe-se como a mercadoria por excelência, um símbolo de status social que parece encerrar o âmago, a saber, a essência de cada pessoa.

Enfim, “Nebraska” é um filme sobre a velhice como “A grande beleza” o é, mas quem ganhou o Oscar foi este último.

Algum palpite sobre os motivos disso?

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

MERCANTILISMO E LIBERALISMO.

Consoante já aventado neste blog, as corporações de ofício medievais controlavam a produção artesanal de sorte a coordenar a pequena produtividade do trabalho às necessidades locais. 

Com o advento da manufatura e da consectária subsunção meramente formal do trabalho no capital, a produtividade do trabalho aumenta e a coordenação entre oferta e procura expande-se para abranger o âmbito nacional, tarefa atribuída aos assim denominados Estados mercantilistas. Nesse caso, a produtividade aumenta ainda muito lentamente em razão desta coordenação entre oferta e procura, sendo certo que a cisão entre valor e preço das mercadorias tampouco se desenvolve plenamente. 

Já com a eclosão da maquinaria e da grande indústria, exsurge a subsunção real do trabalho no capital, a produtividade do trabalho aumenta incessantemente e já não é possível coordenar oferta e procura a nível nacional, sendo certo que o mercantilismo cede ao liberalismo econômico. Nesse caso, desinibe-se plenamente a cisão entre valor e preço das mercadorias, inclusive nos moldes por mim preconizados no artigo intitulado "Sobre valor e preço", publicado na revista marxista Mouro número 8, de dezembro de 2013.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)                  

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A APOLOGIA DO ESTUPRO E OS CORPOS CINZENTOS.

Definitivamente, o fascismo é um fenômeno social deveras complexo, mas algumas características podem ser destacadas. 

O filme de propaganda nazista intitulado "Os corpos cinzentos", por exemplo, apregoa, de forma subliminar, a harmonia social contra a luta de classes: a união das equipes branca e negra em uma só equipe cinzenta antolha-se-nos perfeitamente consentânea com a ideologia de negação da existência de classes sociais distintas, ou ao menos de harmonia entre as classes, sendo certo que a energia advinda dessa união classista deve ser canalizada na violência contra um inimigo comum também ideologicamente construído. 

Em uma ilação livre, penso que a apologia do estupro pode ser uma forma fascista de harmonia entre os seres humanos do sexo masculino, advindos de todas as classes sociais, contra o inimigo comum do sexo feminino, restando justificada a violência numa pretensa "socialização dos meios de reprodução sexual".

Observe-se que tal forma de misoginia fascista tem grande e irracional apelo entre humanos do sexo masculino de todas as classes sociais, o que cumpre de forma bastante adequada a função ideológica de negação das lutas de classes em nome da harmonização social sob o império irrestrito e totalitário do capital.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)          

       

sábado, 6 de dezembro de 2014

NÍVEIS DE ABSTRAÇÃO DO TRABALHO HUMANO.

Segundo Karl Marx, o trabalho humano abstrato é aquele que atribui valor à mercadoria.

É mister suscitar que a abstração do trabalho humano aprofunda-se em consonância com o desenvolvimento histórico da divisão do trabalho, de tal sorte que o trabalhador depende cada vez mais da sociedade para prover a si próprio, na medida em que fica cada vez mais distante de produzir para seu próprio sustento. 

Nesse diapasão, distinguem-se alguns níveis históricos de abstração do trabalho humano, a saber: 

1) Ausência de divisão do trabalho: o trabalhador produz todos os artigos necessários para o próprio sustento;

2) Divisão social do trabalho: o artesão produz uma mercadoria completa com meios de produção próprios;

3) Divisão do trabalho na fábrica: o trabalhador assalariado produz partes de uma mercadoria, mas esta é feita integralmente na respectiva planta fabril;

4) Globalização atual: o trabalhador assalariado produz parte de uma peça feita na respectiva planta fabril, a qual não produz a mercadoria na sua integralidade, mas apenas uma peça sua. 

Destarte, nesse caso a abstração do trabalho indica quão distante resta o trabalhador de prover a si mesmo com o produto do próprio trabalho, sendo paulatinamente mais dependente da sociedade, no caso, capitalista. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)                      

VALOR E PREÇO, OURO E PAPEL-MOEDA.

Dando prosseguimento à publicação anterior neste blog, faz-se mister aduzir que a desinibição já avançada da cisão entre valor e preço provoca a substituição paulatina do dinheiro como ouro pelo dinheiro como papel-moeda e, mais tarde, pelo dinheiro desprovido de qualquer suporte material.

Tal processo, histórico e teórico, exibe tão somente a faceta cada vez mais abstrata do trabalho humano sob a égide do capital. 

Imperioso ainda observar que tal processo revela também o aprofundamento histórico da divisão do trabalho: de início, a divisão social do trabalho; após, a divisão do trabalho na fábrica; finalmente, a divisão do trabalho em que as diversas peça de uma mercadoria são produzidas em países distintos, como na globalização atual.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)             

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

OS TRÊS ASPECTOS DA MERCADORIA.

OS TRÊS ASPECTOS DA MERCADORIA: VALOR-DE-USO, VALOR E PREÇO.

Enquanto a divisão social do trabalho não se desenvolve plenamente, a forma mercadoria permanece incipiente e o produto social ainda se exibe como uma coleção de valores-de-uso que satisfazem diretamente as necessidades humanas.

Com a desinibição da divisão social do trabalho, a forma mercadoria eclode e, com ela, a dissociação entre seu valor-de-uso e seu valor tout court.

Todavia, a forma mercadoria, por ela mesma, não engendra ainda sua dissociação entre valor e preço, porquanto ainda subsiste certa coordenação entre oferta e procura, como o fazem, verbi gratia, instituições como as corporações de ofício medievais, atuantes a nível local, e, mais tarde, os Estados mercantilistas, atuantes a nível nacional.

A dissociação entre valor e preço da mercadoria eclode e exsurge com sua forma capital, quando há uma separação já bem desenvolta entre força-de-trabalho e meios de produção e entre oferta e procura de mercadorias.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

FAUSTO

O VATICÍNIO DE “FAUSTO”: RESENHA DO FILME HOMÔNIMO DE ALEXANDER SOKUROV. 
(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

Em sua película intitulada “Fausto”, o realizador russo Alexander Sokurov aborda com um espetáculo visual deslumbrante a lenda ou mito medieval do cientista que vende sua alma ao Diabo em troca do amor carnal com a jovem Margarete, em enredo lastreado no poema homônimo de Goethe.

Cuida-se de obra bastante instigante, que nos remete a algumas reflexões sobre tal mito medieval, cuja exposição pedimos licença para veicular nesta singela resenha.

É cediço que na religião cristã não há lugar para contrato ou sociedade entre Deus e o Diabo, conquanto a Igreja católica medieval exercesse importante ingerência nas coisas terrenas: na verdade, muito embora a religião funcionasse em boa medida como supedâneo ideológico de uma sociedade dividida entre nobres e servos da gleba, o fato é que a teologia, naturalmente, não podia influenciar na produção e reprodução da vida material do ponto de vista técnico.

Ora, no filme em comento, de Sokurov, o Diabo é representado pelo dinheiro na figura de um usurário, enquanto a ciência personifica-se no sábio doutor Heinrich Faust, sendo certo que os dois contratam entre si e tornam-se sócios: conluio entre ciência e dinheiro, eis a fórmula da futura Revolução Industrial que inaugura o capitalismo em sua manifestação mais acabada.

O mito medieval do Fausto pode ser entendido, pois, como um magnífico vaticínio do surgimento da era em que a ciência, por intermédio da técnica industrial que submete o trabalhador assalariado ao capital, convola-se na nova religião socialmente dominante. Aqui, Fausto encontra o Prometeu acorrentado.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

GRIEG, BRAHMS E OS HISTORIADORES

GRIEG, BRAHMS E OS HISTORIADORES

Recentemente voltei a ouvir dois inesquecíveis concertos para piano e orquestra, pelas mãos do solista brasileiro Nelson Freire, a saber: o do compositor norueguês Edvard Grieg, opus 16; e o de seu colega alemão Johannes Brahms, opus 83, de número dois.

Cuida-se de duas peças monumentais, cujas linhas melódicas já integram, por assim dizer, o imaginário coletivo daqueles que apreciam música, seja de qual gênero for.

Arrisco aqui alguns palpites e impressões sobre as mesmas.

A obra de Grieg, em cada um dos seus três movimentos, exibe-se predominantemente como justaposição de temas melódicos, dispostos em blocos estanques e desconexos, o que não remove de forma alguma a beleza embevecida de cada melodia.

Já a peça de Brahms mostra-se bem mais coesa, pois cada tema melódico surge como desenvolvimento necessário do anterior, em uma desinibição processual em que nada é deixado ao acaso, o que acaba por formar um todo sólido e inquebrantável.

Tais impressões conduzem-me a algumas ilações derivadas do cotejo com o ofício do historiador.

Nesse diapasão, quer me parecer que, se Edvard Grieg fosse um historiador, provavelmente estaria atrelado à corrente da assim designada história factual, ou, como dizem os franceses, "histoire evenementielle", a qual exalta os grandes feitos individuais e os acontecimentos mais estrondosos, geralmente do âmbito político.

Ao passo que Brahms seria provavelmente um historiador marxista ou da chamada Escola dos Annales, que se ocupam primordialmente dos processos, a saber, os liames que encadeiam os acontecimentos, colimando estabelecer inteligibilidade na narrativa dos fatos.

Ambas as correntes historiográficas exibem seu encanto e sua beleza, assim como as músicas de Grieg e Brahms, parecendo-me relevante anotar que os músicos, assim como os historiadores, também se ocupam do tempo: no caso dos primeiros, trata-se do som em movimento, do evolver das notas musicais no tempo.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O ELEVADOR

O ELEVADOR

Pedro e Carla compunham um belíssimo e bem-sucedido casal paulistano, cada qual com seus trinta e poucos anos de idade, mas mesmo depois de dez anos de casamento ainda não tinham engendrado prole.

Eles habitavam um prédio de alto padrão no bairro nobre de Higienópolis, no centro da cidade de São Paulo, sendo certo que o seu requintado apartamento de duzentos metros quadrados era o único do trigésimo andar respectivo.

Cuidava-se de uma atipicamente gélida noite de sábado de fins de julho, com os termômetros indicando sete graus centígrados, e por volta das onze horas o casal, que estava sozinho assistindo a um agradável filme romântico, decidiu que a fome dos dois merecia celebração com pizza e vinho tinto.

Quanto ao vinho não havia muito a deliberar, já que sua adega estava bem fornida de tintos Bordeaux, egressos das melhores safras, mas no que pertine à pizza acabaram por decidir que encomendariam uma, inteiramente feita à moda portuguesa, no serviço de entrega do tradicional restaurante italiano do bairro, que os servia desde que se haviam mudado para aquele prédio, há dois anos.

Avençado isto, o problema que se imiscuía agora consistia em: qual dos dois desceria e depois subiria os trinta andares do prédio para buscar a pizza naquela noite de frio suficiente para congelar a medula dos ossos?

Como era costume, resolveram jocosamente a pendência no jogo de par ou ímpar e, dessa vez, a escolhida foi Carla, que foi compelida a vestir um confortável e espesso roupão de cor avermelhada, colimando desincumbir-se airosamente da saborosa, porém árdua tarefa.

A preguiça apresentava-se demasiada, mas quando o interfone tocou, alardeando a chegada do entregador com a encomenda, Carla não titubeou, levantou-se do sofá e dirigiu-se incontinenti ao elevador, já salivando com a imagem, delineada em sua mente, daquela iguaria inventada pelos napolitanos e, quiçá, aperfeiçoada pelos ascendentes lusitanos.

Aquele inverno era, com efeito, de um rigor implacável, e Carla sentia que lhe congelavam as extremidades do corpo, nada obstante o espesso e avermelhado roupão que a protegia.

A descida do elevador demorou os poucos segundos previstos, durante os quais nossa protagonista, que estava só, pôs-se a observar a sua própria e delgada silhueta refletida nos espelhos que cobriam as quatro paredes do recinto, o qual estava equipado com uma câmera, situada em um dos cantos superiores, que captava imagens de seu interior e as emitia diretamente para o monitor instalado na guarita do porteiro.

A distância que separava tal guarita do saguão de entrada do prédio não era de magnitude tão exacerbada, mas para Carla aquele percurso a céu aberto mostrou-se criogênico e úmido, pois também garoava, e ela o transpôs de forma ligeira, quase correndo.

Cumprimentou cordialmente o porteiro da noite, que lhe abriu o portão interno, e logo pôde divisar a sorumbática e escura figura do entregador de pizza sobre uma bicicleta, o qual se apresentava guarnecido de uma vestimenta impermeável e negra que lhe cobria todo o corpo, inclusive a cabeça por intermédio de um capuz largo e apto a fazer sombra sobre a face, a qual restava inteiramente incógnita.

Carla aproximou-se do portão externo, que permanecia fechado, e saudou sem resposta o entregador de pizza, que remanescia com a cabeça abaixada e a face encoberta por sombras, a pouca distância das grades de ferro, do lado de fora. Ela, então, mostrou o dinheiro do pagamento e introduziu sua mão na abertura entre as grades, destinada precisamente a tais tipos de troca com a parte externa ao portão do prédio, para pegar a encomenda.

Já na posse da pizza, ainda quente, Carla lançou um olhar mais atento em direção à figura do entregador, que dessa vez soergueu a cabeça para deixar sua tez à mostra por um curto instante.

O susto de nossa protagonista não foi desprezível, pois o entregador ostentava um semblante lívido exatamente igual à horripilante figura do ator Max Schreck em ação no filme Nosferatu de F. W. Murnau, com suas orelhas e dentes pontiagudos e olhos esbugalhados sob sobrancelhas espessas.

Mas o susto durou pouco, eis que o portador de pizzas imediatamente voltou a baixar a cabeça, escondendo o rosto na penumbra e retirando-se do lugar com extrema rapidez e em total silêncio.

Recobrada, Carla fez um gesto positivo para o porteiro do prédio, que retribuiu com um aceno de mão, desejando-lhe boa noite.

Antes de adentrar o elevador no retorno ao aconchego terno e aquecido do lar, em que o marido aguardava ansiosamente para encetar o banquete de pizza e vinho tinto, a moradora do trigésimo andar ainda se deteve por alguns instantes e voltou-se para trás com o pensamento direcionado para a bizarra figura do entregador, talvez com receio de que ele pudesse, de alguma forma, tê-la seguido até ali. Mas ela estava só, certeza esta que não impediu, todavia, que um certo calafrio lhe trespassasse a espinha dorsal.

Moveu-se finalmente para dentro do elevador, apertou o botão correspondente ao trigésimo andar e as portas respectivas fecharam-se. O mostrador digital do recinto começou então a fornecer o progresso da ascensão, a qual, no entanto, interrompeu-se abruptamente.

De fato, o elevador parou com um solavanco quando o mostrador digital da ascensão indicava o décimo terceiro andar do prédio, e novamente Carla assustou-se, pois seus pés chegaram a despegar-se do piso, tamanha foi a brutalidade do movimento que deteve a subida.

Ela aborreceu-se profundamente com o que estava a acontecer, mas com espírito prático apertou o botão para que as portas se abrissem, e então notou que estava na metade do caminho entre o décimo terceiro e o décimo quarto andares, sem possibilidade de evadir-se.

Pressionou então o botão que lhe permitia comunicar-se diretamente com o porteiro e chamou-o pelo nome, mas ele não respondeu aos apelos cada vez mais desassossegados de Carla.

Conquanto não padecesse de claustrofobia, a incômoda situação exasperou-a e a deixou em estado de quase pânico, pois não conseguia de forma alguma comunicar-se com o mundo exterior ao elevador.

Foi então que descobriu por acaso algo que aliviou um pouco sua tensão: em um dos bolsos do roupão estava o seu telefone celular.

Ora, é cediço que telefones celulares costumam falhar dentro de elevadores, mas isso tampouco deteve Carla na tentativa de estabelecer contato com seu marido pelo aparelho que agora estava em suas mãos.

Malograram, todavia, as tentativas da nossa protagonista, já que o telefone celular realmente não estabelecia ligações dentro daquele recinto.

O desespero, então, estabeleceu-se, e Carla passou a berrar desbragadamente.

Tal cena, tétrica, foi interrompida também abruptamente por um novo e pouco auspicioso evento: as luzes do elevador apagaram-se sem aviso e calaram profundamente a voz estrídula da moradora do trigésimo andar.

Na mais impenetrável escuridão, dentro de um elevador parado no décimo terceiro andar e sem qualquer contato com o mundo exterior, Carla ainda chegou a acalmar-se um pouco e teve a ideia de iluminar o recinto com a luz do telefone celular.

Ao acionar a luz do celular, Carla mirou o espelho à sua frente e então um estremecimento fustigou-lhe alma: a imagem que se descortinava era a do entregador de pizza ao seu lado, com um sorriso cínico nos lábios a mostrar os dentes pontiagudos.

Pedro, no apartamento, começava a impacientar-se, pois já se passavam cerca de dez minutos desde que Carla saíra para pegar a pizza.

Levantou-se do sofá e chamou o elevador.

Quando este chegou ao trigésimo andar e a porta se abriu, Pedro vislumbrou no chão do recinto o telefone celular de Carla e a embalagem de pizza com a tampa fechada.

Abriu a tampa e verificou que dentro da embalagem havia somente um punhado de pedaços de borda de pizza com marcas de mordidas.

Carla nunca mais foi vista.

As imagens gravadas pela câmera do elevador mostravam que ela jamais adentrara o ascensor após ter pego a pizza no andar térreo do prédio.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

"A GRANDE BELEZA"

SOBRE O FILME “A GRANDE BELEZA”, DE PAOLO SORRENTINO.

O cineasta napolitano Paolo Sorrentino tem quarenta e poucos anos, mas aborda a velhice com bastante delicadeza em seu filme “A grande beleza”.

Nessa obra ele dialoga tanto com as religiões quanto com o marxismo, vistos como duas formas antípodas da mesma crença na transcendência.

Em geral, as religiões abroquelam a transcendência mediante a crença em vidas distintas da vida neste mundo, ao passo que o marxismo acredita em um futuro melhor neste mesmo mundo.

Mas o fato é que tanto as religiões quanto o marxismo exibem esse aspecto transcendental, porquanto ambos oferecem-nos uma outra vida, uma outra oportunidade, seja, no primeiro caso, para nós mesmos; seja, no segundo, para as gerações vindouras.

Não me convence, contudo, a hipótese de que esta obra de Sorrentino seja anticomunista ou contra qualquer religião, não se trata disso.

Cuida-se, tão somente, de olhar para esta nossa vida aqui, individual e presente, que acaba irrefragavelmente com a morte, haja ou não outras vidas por aí.

Quando chega a velhice e esta vida aqui está por acabar, quando estamos mais próximos da despedida, a coisa toda pode ficar um tanto deprimente, e as estátuas e monumentos legados do passado apenas nos fazem lembrar que não há apelação contra a morte.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

MEDICINA E HISTÓRIA: ALGO EM COMUM?

Não sou médico, mas historiador e, nessa qualidade, assumo aqui os riscos de falar um pouquinho de medicina. 

Nossa disciplina, a história, ensina a estudar uma matéria bastante interessante: o tempo, a saber, o processo histórico, ou as mudanças e permanências através das eras. 

Sobre isso, o bibliófilo polímata Karl Marx, admirador confesso de Charles Darwin, aventou certa vez que "a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco". Ora, como as formas biológicas superiores não existiriam sem a antecedência temporal das formas inferiores, dessume-se que, inversamente, estas últimas também ensinam sobre o ser humano.

Destarte, estou convencido de que a medicina teria muito a ganhar em excelência científica se adotasse mais amiúde a teoria da evolução das espécies, porquanto o tempo, essa quarta dimensão física, parece matéria essencial de qualquer ciência, sem a qual o pretenso cientista pode claudicar. 

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)                
    

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

PARA CESÁRIA ÉVORA.

Mornas no mar
Singram o Atlântico
Com a flor do Lácio a lapidar
Idioma tão romântico
Diva descalça Cesária
Évora, seu nome lusitano
Com paixão atrabiliária
Glória para o continente africano  

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira) 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

TEMPO DE PRODUÇÃO, TEMPO DE CIRCULAÇÃO E TAXA DE LUCRO.

Se adotarmos terminologia marxista, o preço de dada mercadoria é determinado simultaneamente pelas variáveis de tempo de produção e tempo de circulação.

Se, por outro lado, aceitarmos, sob perspectiva marginalista, que o preço é inversamente proporcional ao tempo de circulação (ou de consumo), então tanto a massa de mais-valia quanto a taxa de lucro do capital são também inversamente proporcionais ao tempo de circulação, o que parece corroborar nossas conjecturas anteriores.

Isso demanda, porém, demonstração matemática mais formalmente ordenada.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA) 

TEMPO DE PRODUÇÃO E TEMPO DE CONSUMO.

Quer nos parecer, do que se dessume das publicações anteriores neste blog, que o preço da mercadoria individual homogênea é uma resultante das coordenadas de tempo de produção e tempo de consumo relativos à espécie dessa mercadoria, de tal sorte que, no que pertine ao tempo de consumo, interessa se se trata de bem durável ou não-durável, grau de obsolescência, etc. 

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)      

terça-feira, 7 de outubro de 2014

VALOR E PRODUÇÃO, PREÇO E CONSUMO.

Não nos parece ocioso enfatizar, de forma ligeira, o seguinte:

1) Os economistas clássicos elaboraram a teoria do valor-trabalho divisando o processo de produção;

2) Os economistas neoclássicos formularam a teoria da utilidade marginal decrescente vislumbrando o processo de consumo (ou circulação)

3) De 1 e 2 resulta que a determinação do preço da mercadoria individual homogênea está atrelada ao respectivo processo de consumo ou circulação, mas observados os parâmetros (ou margens) de valor determinados pelo respectivo processo de produção.

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)        

  

sábado, 4 de outubro de 2014

ADAGIETTO PARA LOUIS ALTHUSSER.

Sem glamour
Sem arte
Sem cultura  
Sem nações
Sem continentes
Sem povos
Sem etnias
A ciência não vê, não ouve, não fala, não sente
Mas ilumina. 

(de autor desconhecido, e muito!)
  

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

ADAGIO DA SOLIDÃO

Não se cuida de reconhecimento individual.
Não se cuida de palavras reconfortantes.
Não se cuida de dizer o que se quer ouvir.
Não se cuida de agradar o público.
Não se cuida de vaidade intelectual.
Não se cuida do óbvio.
Cuida-se de ciência.

(autor desconhecido, e como!) 


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

AINDA SOBRE CLÁSSICOS E NEOCLÁSSICOS.

Faz-se mister, outrossim, considerar a hipótese em que o decréscimo do preço de dado valor-de-uso, resultante da simples atuação da lei da utilidade marginal decrescente, determina novos parâmetros de valor radicados em renovação tecnológica do processo de produção, sendo certo que, nesse caso, é o preço que determina o valor e não o contrário. 

Aqui vislumbra-se uma espiral decrescente do preço desse valor-de-uso, a qual remanesce atuando até que a taxa de lucro torna-se irrisória e a oferta do produto cai, quando então se reinaugura novo ciclo desse valor-de-uso, ou um novo valor-de-uso do mesmo gênero, mas tecnologicamente superior, toma-lhe o lugar por torná-lo obsoleto. 

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira) 

       

sábado, 27 de setembro de 2014

ENTRE CLÁSSICOS E NEOCLÁSSICOS, OU SINGELO ELEMENTO PARA UMA TEORIA UNIFICADA DO VALOR ECONÔMICO.

De proêmio, remeto meus caros leitores aos meus artigos "Sobre valor e preço" (Revista Mouro n. 8, dezembro de 2013) e "Complementos ao meu artigo sobre valor e preço" (publicado neste blog aos 08 de agosto do corrente ano).

Dadas as premissas destes dois artigos (os quais se ancoram, por sua vez, no capítulo X do livro primeiro de "O capital" de Karl Marx), mister aduzir que a teoria clássica do valor-trabalho exibe-se apta à determinação do valor da mercadoria, enquanto a teoria neoclássica ou marginalista mostra-se hábil à determinação do preço da mesma mercadoria.

Nesse diapasão, o preço da mercadoria somente pode oscilar entre dois parâmetros ou margens, vale dizer, entre: 1) o valor socialmente vigente; e 2) o tempo de trabalho necessário para produzi-la em determinada planta fabril tecnologicamente pioneira e única, sempre menor do que 1, obviamente.

Assim, a taxa de mais-valia (relativa) oscila entre a magnitude máxima quando o preço é tendencialmente igual a 1 (primeira margem) e a nulidade quando o preço é tendencialmente igual a 2 (segunda margem). 

por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA.    
       

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

AINDA SOBRE OBSOLESCÊNCIA E VELOCIDADE DE CIRCULAÇÃO DE CAPITAL

A revista Veja desta semana publicou um artigo muito interessante sob o título "Como a inovação cresce na pobreza", incluindo dados bastante significativos que corroboram, grosso modo, algumas de minhas conjecturas econômico-diletantes já veiculadas neste blog. 

Com efeito, dos dados mostrados pela Veja no artigo supramencionado podemos dessumir, por exemplo, que ferrovias, automóveis e aviões (valores-de-uso oriundos de revoluções tecnológicas mais remotas) estão sendo substituídos, em certa medida, pela internet, pela telefonia celular e pelos drones, valores-de-uso mais atuais, fato que corrobora a hipótese da obsolescência como necessidade intrínseca ao capital, afora exibir certa tendência à imobilização dos indivíduos pela desnecessidade de deslocamentos.   

No mesmo diapasão, podemos dessumir, dos dados publicados pela Veja, que a necessidade de arrostar a lei tendencial de decréscimo da taxa de lucro, formulada por Karl Marx, por intermédio dos dispositivos que aumentam a velocidade de circulação do capital parece procedente, pois as revoluções tecnológicas fazem disseminar mais rapidamente as mercadorias, cujos novos valores-de-uso, por seu turno, também servem para acelerar o processo de circulação.

Remeto, pois, os meus caros leitores ao artigo de minha autoria publicado neste blog no último dia 16 de setembro, para que possam cotejar as conjecturas nele veiculadas com o artigo da revista Veja ora em comento. 

Grato pela leitura, 

Luis Fernando Franco Martins Ferreira.  

    

        

terça-feira, 23 de setembro de 2014

ENTRE O AUTISTA E O ESQUIZOFRÊNICO: CONJECTURA LEIGA SOBRE O TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR.

Na qualidade de leigo no assunto, tenho uma hipótese:

O autista não estabelece relações afetivas, enquanto o esquizofrênico estabelece relações afetivas imaginárias: o bipolar é um autista que, ao tentar estabelecer relações afetivas, torna-se um esquizofrênico.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA) 

     

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

MAIAKÓVSKI

Talvez a arte ainda seja, hodiernamente, o último bastião onde o caráter daquilo que é humano litiga contra o anti-humanismo do capital, impedindo que nos transformemos em meros vetores de suas determinações estruturais. É por isso que Louis Althusser estava, em nosso sentir, apenas parcialmente correto. Mas os fundadores do socialismo científico estavam completamente corretos quando asseveravam que a revolução deve extrair sua poesia do futuro, e não do passado, e aqui devemos entoar loas e encômios ao grandiloquente Vladimir Maiakóvski.

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)  

        

terça-feira, 16 de setembro de 2014

CONJECTURAS SOBRE CAPITAL, OBSOLESCÊNCIA E UNIVERSALIDADE.

CONJECTURAS SOBRE CAPITAL, OBSOLESCÊNCIA E UNIVERSALIDADE.

1. O livro primeiro de “O Capital” de Karl Marx é lastreado na primeira revolução tecnológica, a saber, aquela do século XVIII na Inglaterra, a qual transformou radicalmente o processo de produção sem, no entanto, criar novos valores-de-uso, ou novas necessidades humanas, quedando adstrita basicamente à indústria têxtil, o que somente foi possível em razão da reduzida composição orgânica do capital verificada anteriormente a tal revolução industrial.

2. As revoluções tecnológicas ulteriores, ao contrário, partindo de uma composição orgânica do capital já quantitativamente importante, transformaram não apenas o processo de produção, mas também o de circulação de capital, criando novos valores-de-uso, a saber, novas necessidades humanas.

3. A necessidade de revolucionar também o processo de circulação de capital advém da necessidade de se arrostar e contrapor à queda tendencial da respectiva taxa de lucro, verificada com o aumento de sua composição orgânica.

4. Tal contraposição à lei de tendência de baixa da taxa de lucro realiza-se por: 4.1. Maior velocidade de circulação de capital, com decorrente aumento da massa de mais-valia no mesmo lapso temporal; 4.2. Contínua obsolescência dos valores-de-uso já estabelecidos e criação também contínua de novos valores-de-uso, com abertura de novos mercados para novos produtos.

5. Em relação a 4.2, as inovações tecnológicas dos valores-de-uso devem exibir o atributo da universalidade, pois o capital necessita de uma expansão tendencialmente infinita dos mercados de novos produtos, como forma de realização da mais-valia relativa, consoante preconizado no capítulo X do livro primeiro de “O Capital”.

6. Os novos valores-de-uso devem atender aos critérios de: 6.1. criar novas necessidades humanas universais e, portanto, abrir novos mercados para novos produtos, tornando obsoletos antigos produtos; 6.2. aumentar a velocidade de circulação do capital.

7. Os critérios de 6 restringem cada vez mais as possibilidades de renovação do capital, de que resulta que o sistema capitalista como um todo vai paulatinamente esgotando suas alternativas de reprodução, gerando crises.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

domingo, 31 de agosto de 2014

RIO DE JANEIRO: A NOVA CALIFÓRNIA BRASILEIRA?

Decididamente, o Rio de Janeiro está em alta.

A revista “Forbes” de agosto do ano corrente publicou uma nova lista dos bilionários mais afortunados do Brasil, em que há seis cariocas entre os 10 mais bem colocados, e nenhum paulista.

O jornal “Folha de SP” registrou em 23 de agosto, por seu turno, que a região metropolitana do Rio de Janeiro ostenta atualmente uma média salarial maior do que a da capital paulistana.

O carioca Artur Ávila, do prestigioso Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, do Rio de Janeiro, foi o primeiro latino-americano laureado com a Medalha Fields, considerada o Nobel dessa ciência: ele estudou ainda nos festejados colégios cariocas de São Bento e Santo Agostinho, reiteradamente entre as primeiras escolas do elenco do ENEM, afora ter-se graduado na UFRJ.

Enquanto isso, a USP enfrenta um perigosíssimo processo de crise financeira.

Parece que a outrora poderosa economia paulista vai começando a perder terreno, talvez pelo fato de estar muito vinculada à velha indústria das primeiras revoluções tecnológicas.

No Rio de Janeiro, ao revés, assim como ocorreu com a Califórnia de Hollywood, a promissora indústria de entretenimento, nomeadamente mídia e comunicação, exibe um peso bastante importante, bastando saber que a cidade é sede das Organizações Globo, um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, além de acolher empresas de telecomunicações como CorpCo, TIM, NET, Embratel, Intelig e StarOne.

O Rio de Janeiro também produz 65% do cinema nacional, conta com um grande parque gráfico-editorial e ainda uma indústria fonográfica de muito relevo, com empresas como EMI, Universal, Sony BMG, Warner e SomLivre.

A indústria relacionada às novas formas de necessidades humanas, lastreadas na mídia e entretenimento, bem assim à nova tecnologia de informação, parece mais alvissareira do que a velha indústria de São Paulo, de geração tecnológica anterior.

Ora, o Rio de Janeiro ainda não é o Vale do Silício brasileiro, até mesmo porque o Brasil ainda não passou pela revolução tecnológica da informática, mas aparenta estar bem mais perto de ser uma nova Califórnia latino-americana, se comparada a São Paulo.

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

MÉDICOS (GINECOLOGISTAS) E MONSTROS

SOBRE O FILME "DEAD RINGERS" (1988) 

Este filme está, decerto, entres os mais instigantes e interessantes a que já tive a oportunidade de assistir. Como sói acontecer em sua cuidadosamente elaborada obra, o respectivo diretor David Cronenberg, mais uma vez, procura escrutinar os tênues limites envolvidos na problemática dicotomia entre natureza e civilização, desincumbindo-se com a comezinha maestria.

Muitas questões são abordadas na película, mas destaco o aberrante relacionamento entre os gêmeos univitelinos Elliot e Beverly Mantle, renomados ginecologistas de Toronto, com a infértil e mutante atriz Claire Niveau, dotada de um igualmente aberrante útero trifurcado.

Beverly, o mais sentimental dos gêmeos, logo apaixona-se por Claire e passa a compartilhar com ela um deletério vício por medicamentos controlados. Aqui já exsurge a questão: fármacos são de fato uma prova da transformação bem sucedida da natureza pela civilização? O que dizer dos efeitos colaterais e da dependência química?

Obcecado com sua parceira trifurcada e manipuladora, Beverly incorre em psicose e encomenda a um artista a confecção de instrumentos ginecológicos com formas orgânicas grotescas para, supostamente, operar mulheres mutantes, instrumentos estes que evocam a arquitetura de Antoni Gaudí ou a geometria fractal de Benoit Mandelbrot: aqui a natureza orgânica impõe-se à ciência linear inventada pela civilização.

Mas o interessante mesmo do filme, e que o faz muito atual para nós brasileiros, é a questão da pretensa onipotência da ciência, aquela mesma capaz de transformar médicos (ginecologistas) em monstros.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

EDUCAÇÃO PARA TODOS.

"Se enxerguei mais longe, foi porque me apoiei sobre os ombros de gigantes" (Isaac Newton)  

O indivíduo humano é um ser social não apenas por pertencer à sociedade de sua época, mas por ser fruto das gerações que o precederam, de tal sorte que o tempo passado constitui a sua identidade tanto quanto o tempo de sua existência corpórea. Logo, como ser social, o indivíduo humano é também um ser histórico. O mesmo sucede com o conhecimento, que é histórico e cumulativo, de que se dessume que o cuidado com a transmissão do conhecimento aos indivíduos, por intermédio da educação, constitui a única forma de manter uma sociedade saudável e em progresso acelerado.

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

DEMOCRACIA DIRETA OU "HORIZONTAL"

TESES SOBRE JUNHO DE 2013: SOBRE A EMERGENTE DEMOCRACIA HORIZONTAL.

1. A revolução microeletrônica, ou revolução no campo da tecnologia da informação, exerceu influência no próprio modo de produção capitalista com a robótica, por exemplo, que aumentou a composição orgânica do capital e provocou um decréscimo, portanto, nas taxas de lucro.

2. Ao mesmo tempo, tal revolução compensou a queda das taxas de lucro mediante o aumento da velocidade de rotação do capital, através de melhorias e incremento dos serviços como transportes e telecomunicações, no setor terciário da economia.

3. De 1 e 2 deriva que aumentou muito a proporção da população empregada no setor terciário (novas classes médias) em relação à população fabril do setor secundário.

4. De 3 deriva que as novas classes médias do setor terciário da economia, proporcionalmente em ascensão, tomaram certa dianteira política em relação aos trabalhadores fabris, o que restou patente nas jornadas de junho de 2013 no Brasil.

5. A nova forma de organização política horizontal do Movimento Passe Livre é típica das novas classes médias do setor terciário da economia, que por ora não emulam pelo poder estatal, mas pode e deve ser incorporada pela forma política partidária que efetivamente disputa o controle do poder estatal.

6. A forma política do partido tradicional está historicamente vinculada à luta de classes entre capital e trabalho, entre burguesia e proletariado, mas deve ser atualizada para incorporar os movimentos horizontais do setor terciário da economia e suas correspondentes classes médias em ascensão.

7. Já que o setor terciário da economia, a saber, a nova classe média organiza-se em movimentos políticos horizontais através das redes sociais da internet, seria preciso que o partido político tradicional de esquerda engendre sua própria rede social para atender demandas desse setor da economia, bem assim incorpore formas dinâmicas de democracia direta, que designamos “democracia horizontal”, nas suas redes sociais.

8. Denominamos “democracia horizontal” porque tais movimentos horizontais votam e pugnam por reivindicações e propostas concretas (democracia direta) e não em representantes e líderes políticos (democracia representativa).

9. O MPL, por exemplo, constitui forma de organização horizontal de democracia direta que vota e luta por reivindicações concretas na área de transporte público gratuito.

POR LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

OUTRAS CONJECTURAS SOBRE HISTÓRIA ECONÔMICA E PLANIFICAÇÃO

1) A contradição ínsita à forma mercadoria, nomeadamente entre seu valor (aspecto abstrato, “gelatina” de trabalho abstrato, indiscriminado) e seu valor-de-uso (aspecto concreto, apto a satisfazer necessidades humanas), desdobra-se na contradição entre o processo de produção e o processo de circulação de capital.

2) Quanto ao primeiro processo, interessa apenas o aspecto abstrato da mercadoria, a saber, a produção de mais-valia, a valorização de valor abstrato.

3) Quanto ao segundo processo, interessa a realização da mais-valia, a saber, sua concretização pela venda da mercadoria, o que enseja o reinício do ciclo do capital. Ora, aqui interessa o valor-de-uso da mercadoria, sua aptidão para satisfazer necessidades humanas concretas.

4) Bem, a primeira Revolução Industrial, na década de 1770 na Inglaterra, afetou basicamente o primeiro processo, aquele de produção de capital, sem criar novas necessidades humanas concretas, sendo certo que a indústria têxtil, já então existente, foi revolucionada em seu processo de produção.

5) Duzentos anos depois, nos Estados Unidos da América, uma nova revolução industrial, nomeadamente a revolução informática, passa a afetar também e principalmente o processo de circulação de capital, aquele atinente ao valor-de-uso da mercadoria, isto é, seu aspecto concreto, pois não apenas acelerou este processo de circulação, mas também criou novas necessidades humanas concretas, como o uso de computadores, celulares, tablets, etc.

6) Tal revolução informática derrotou fragorosamente a expansão econômica dos países de planificação socialista lastreada no aspecto abstrato da mercadoria, a saber, no processo de produção de capital, na medida em que revolucionou precisamente o processo de circulação de capital, onde se divisa o aspecto concreto da mercadoria, seu valor-de-uso, afora engendrar novas necessidades humanas, novos valores-de-uso.

7) O desafio hodierno consiste, pois, em suplantar a crise mundial do capitalismo mediante uma planificação econômica em que se divise o processo de circulação das mercadorias e seu aspecto concreto de valor-de-uso, o que já se delineia de forma embrionária e incipiente nos sítios de comércio eletrônico, como Amazon e Alibaba, que permitem obter um panorama e um mapeamento mais ou menos fiéis da realidade concreta da oferta e demanda de mercadorias como valores-de-uso.

(Por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

HIPÓTESE SOBRE COMÉRCIO ELETRÔNICO GOVERNAMENTAL

HIPÓTESE SOBRE COMÉRCIO ELETRÔNICO GOVERNAMENTAL

As corporações de ofício medievais colimavam, mediante coordenação de oferta e procura, obstar tanto a subsunção plena da produção artesanal à forma mercadoria, como também a separação entre força de trabalho e meios de produção, vale dizer, a transformação da própria força de trabalho em mercadoria.

Os Estados mercantilistas apenas expandiram tal coordenação para abranger o âmbito nacional como um todo, entravando a penetração do capital mercantil no âmbito da produção material.

A acumulação primitiva e a revolução industrial verificadas pioneiramente na Inglaterra completaram, todavia, a subsunção da produção industrial ao capital com a respectiva transformação da força de trabalho em forma mercadoria.

Isto posto, a hipótese que lançamos consiste na necessidade da planificação econômica de jaez socialista abolir a forma mercadoria, mediante controle, inicialmente, não do processo de produção de capital, mas do processo de circulação de capital.

O escopo do controle inicial do processo de circulação de capital consiste em acelerar tal processo para que seu tempo de duração fique nulo, a saber, tendencialmente igual a zero, quando então restabelecer-se-á a coordenação perdida entre oferta e procura e a forma mercadoria começará a extinguir-se.

Dadas tais premissas de história econômica, interessante notar que a internet, mais uma vez, pode desempenhar importante protagonismo quanto ao escopo de extinção paulatina da forma mercadoria.

Com efeito, sítios de comércio eletrônico como o americano Amazon e o chinês Alibaba prestam grande serviço em favor desse escopo, na exata medida em que exibem aptidão para haurir um importante mapeamento da demanda dos produtos que oferecem à venda.

Ora, o mapeamento da demanda antolha-se-nos um passo inaugural considerável para a planificação econômica, com a resultante coordenação entre oferta e procura de mercadorias.

Nesse diapasão, economias de jaez socialista deveriam fomentar a eclosão de sítios de comércio eletrônico sob tutela governamental, como recurso comercial de obtenção de mapeamento da demanda, cujas informações podem instruir adequadamente a planificação da economia em geral.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

domingo, 10 de agosto de 2014

CONJECTURAS ECONÔMICO-MARXISTAS DILETANTES

CONJECTURAS ECONÔMICO-MARXISTAS DILETANTES

Uma das contradições básicas do capital insere-se na contraposição entre seus processos, respectivamente, de produção e de circulação.

Para o primeiro processo, o ideal seria que o tempo de circulação fosse tendencialmente nulo, isto é, igual a zero, de tal sorte que a cada aumento da composição orgânica do capital, com a correspondente queda da taxa de lucro industrial, deveria corresponder uma diminuição do tempo de circulação para arrostar esta última consequência (queda da taxa de lucro), mediante o aumento da massa de mais-valia obtida no mesmo lapso temporal.

Para o segundo processo, o ideal seria que o valor da mercadoria fosse tendencialmente igual a zero e o número de mercadorias individuais tendencialmente infinito, como forma de maximização do lucro comercial e diminuição do tempo de estoque.

Disso resulta que o processo de produção de capital necessita da anulação do tempo do processo de circulação respectivo, ao passo que este necessita da anulação do tempo de produção, o que explica que as revoluções tecnológicas bem sucedidas afetem ao mesmo tempo os processos de produção e de circulação de capital, diminuindo simultaneamente seus tempos de manifestação.

Tal singela e incipiente conjectura deve ser demonstrada nas formas empírica e teórico-matemática.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, procurador federal e historiador pela USP)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

AMPLIAÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO ECONÔMICO DE TRABALHO PRODUTIVO

AMPLIAÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO ECONÔMICO DE TRABALHO PRODUTIVO.

No decurso da história econômica, o conceito de trabalho produtivo ampliou-se, de tal sorte que se podem distinguir três fases bem delineadas, a saber:

1) Propriedade fundiária: até a revolução industrial inglesa do século XVIII, o conceito econômico de trabalho produtivo adstringe-se à atividade agropecuária, consoante, por exemplo, a teoria dos fisiocratas, notadamente François Quesnay;

2) Propriedade dos meios de produção: após tal revolução industrial, o conceito amplia-se para abroquelar também o trabalho fabril, atrelado ao processo de produção do capital, consoante livro primeiro de O Capital de Karl Marx;

3) Propriedade dos meios de circulação: com o advento da revolução informática, dos anos 1970-1980, o conceito de trabalho produtivo deve ser agora ampliado para abranger os trabalhadores envolvidos na circulação de capital, notadamente os serviços de informática, finanças, telecomunicações e transportes, que arrostam a queda tendencial da taxa de lucro do capital fabril ou industrial mediante aumento da velocidade de rotação do capital, sendo interessante notar que, hodiernamente, as economias do centro do capitalismo são dominadas pelo setor terciário, ou seja, o setor dos serviços.

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

COMPLEMENTOS AO MEU ARTIGO "SOBRE VALOR E PREÇO" (REVISTA MOURO N. 8, DEZ. 2013)

1) A partir da inovação tecnológica e do consectário aumento da força produtiva do trabalho verificados em uma determinada planta fabril pioneira, tal inovação tende a difundir-se entre as demais plantas fabris individuais, do mesmo ramo de produção, em razão da concorrência de preços, de tal sorte que cada nova planta que adere à mencionada inovação diminui um pouco o preço, até que o preço do produto desse ramo industrial acabe por coincidir com o novo valor desse produto, que agora é derivado da difusão total da inovação técnica em todo esse ramo da indústria.

2) Quando todo o ramo industrial em questão, ou sua maior parcela, adere à inovação tecnológica, um novo valor do produto de tal ramo passa a vigorar, em razão da nova força produtiva do trabalho assim disseminada, e a mais-valia (relativa) somente voltará a ser possível com uma subsequente inovação técnica e seu consectário aumento da força produtiva do trabalho.

3) Como a cada nova adesão à inovação técnica geralmente vem acompanhada de diminuição do preço em razão da concorrência, conforme item 1, verifica-se uma diminuição paulatina da taxa de mais-valia, até sua anulação completa quando o novo valor do produto, já reduzido em razão do aumento da produtividade, passa a vigorar nesse ramo industrial, agora completamente tomado pela inovação tecnológica.

4) A queda gradativa da taxa de mais-valia, cf. item 3, é compensada pelo aumento da velocidade de rotação de capital e consectário aumento da massa de mais-valia no mesmo interregno temporal, derivados do menor preço pelo qual é vendido o produto e consequente domínio do mercado.

5) Tal queda gradativa da taxa de mais-valia, cf. item 4, também pode ser compensada pela acumulação de capital, com aumento absoluto dos capitais constante e variável na planta fabril (em nova proporção devida ao aumento da composição orgânica radicada na inovação tecnológica), de tal forma que se aufere assim uma maior massa de mais-valia.

6) Enfim, tal queda da taxa de mais-valia também pode ser compensada pelo simples aumento da jornada de trabalho, com proporcional aumento da massa de mais-valia, expediente este que, todavia, resta limitado pela jornada de trabalho máxima legalmente imposta.

(POR LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

O PROBLEMA SOCIAL DA REALIZAÇÃO DA MAIS-VALIA

O PROBLEMA DA REALIZAÇÃO DA MAIS-VALIA NOS ESQUEMAS DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL SOCIAL TOTAL.

Marx parte do produto social M´ em sua investigação dos esquemas de reprodução do capital social total constantes do livro segundo de O Capital, inserindo-se, portanto, na tradição de Adam Smith, por ele criticado: eis, em nosso humilde sentir, um equívoco.

Impõe-se, todavia, partir de D, do capital-dinheiro, para saber que M´ contém valor maior do que aquele que foi adiantado em dinheiro para o produzir, ou seja, contém mais-valia, e portanto o capital social total precisa realizar tal mais-valia, a saber, necessita reconverter tal mais-valia em dinheiro (D´), sendo certo que, no entanto, introduziu no mercado apenas D, menor do que D´. Eis o problema, em suma: a realização da mais-valia social requer dinheiro em quantidade maior do que aquela que o próprio capital social total injetou no mercado ao comprar meios de produção e força de trabalho para produzir M´.

No esforço de explicar a realização dessa mais-valia constante de M´ (que é maior do que D), pedimos licença para partir do meu texto “Sobre valor e preço”, publicado na Revista Mouro número 8, de dezembro de 2013 (lastreado no capítulo X do livro primeiro de O Capital), para aventar que o capital somente produz mais-valia relativa, decorrente de aumento da força produtiva do trabalho em uma planta fabril tecnicamente pioneira, a saber, em um capital individual pioneiro específico, de tal sorte que a diminuição do preço de M´, produto desse capital pioneiro, enseja sua total realização no mercado ao concorrer com outras mercadorias da mesma espécie e mais caras.

Logo, a mais-valia constante de M´ somente realiza-se de forma individual e pioneira, às custas dos demais capitais individuais tecnicamente ultrapassados pelo capital individual que inova, em dado segmento da produção social, ao aumentar a força produtiva do trabalho. Tal capital individual pioneiro escoa toda a sua produção M´ em razão do menor preço, dominando o mercado dessa espécie de mercadoria e realizando, assim, a mais valia contida em M´.

Destarte, a realização da mais-valia, em geral, somente pode ser considerada e explicada individualmente, mas não socialmente, a saber, somente do ponto de vista da cada capital individualmente considerado, com as revoluções técnicas e de composição orgânica que o acompanham.

(Por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, procurador federal)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

PARA UMA TEORIA ECONÔMICA DOS FATORES LIMITANTES

PROLEGÔMENOS PARA UMA TEORIA ECONÔMICA DOS FATORES LIMITANTES

Até o advento da Revolução Industrial inglesa do século XVIII, o fator limitante da produção da vida material corresponde às forças naturais, máxime a força natural da terra arável, vale dizer, a força produtiva é basicamente a força da natureza e seus ciclos. O valor econômico, portanto, restava condicionado pela força da natureza e seus ciclos, do que resultou a teoria fisiocrática de que o trabalho produtivo era essencialmente aquele atrelado às atividades agropecuárias.

Com o advento da Revolução Industrial inglesa do século XVIII, as forças da natureza começam a ser dominadas e potencializadas pela humanidade, de tal forma que o fator limitante da produção econômica passa a ser a força de trabalho, a saber, o próprio corpo humano, e não mais as forças naturais. Por isso o valor econômico passou a ser determinado essencialmente pelo trabalho manual potencializado pelo processo fabril, máxime na teoria ricardiano-marxista do valor–trabalho.

As ulteriores revoluções tecnológicas no modo de produção da vida material da sociedade tornaram tendencialmente ínfima a quantidade de trabalho manual incorporado aos respectivos produtos econômicos, de tal sorte que o fator limitante deixou de corresponder ao trabalho manual, físico, e passou a identificar-se com o trabalho intelectual, agora potencializado pela revolução digital do último quartel do século XX.

Hodiernamente, portanto, o valor econômico é produzido somente pelo fator limitante correspondente ao trabalho intelectual, de tal sorte que somente a produção de inovação tecnológica encerra valor econômico.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)  

HIPÓTESE SOBRE HISTÓRIA ECONÔMICA E DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

O curso da história econômica demonstra que o fluxo populacional nos distintos ramos da produção e reprodução da vida material segue os vetores do aumento da produtividade e do consectário aumento do excedente nesses ramos.

Assim, até o advento da primeira revolução industrial no século XVIII, a atividade econômica preponderante corresponde à agropecuária com baixo nível técnico, baixa produtividade e modesto excedente econômico, de tal sorte que a quase totalidade da população resta ainda presa ao trabalho braçal no campo, sendo quantitativamente restrita a população que, compondo a classe social dominante, não precisa realizar tal trabalho braçal e é alimentada por esses trabalhadores rurais.

Com o progresso técnico resultante do advento da primeira Revolução Industrial e com as revoluções técnicas ulteriores, máxime em decorrência do progresso do maquinário agrícola, o excedente econômico produzido pela atividade agropecuária é exponencialmente incrementado e passa a ser em grande parte consumido pela parcela da população envolvida na atividade industrial, de tal sorte que ocorre um fluxo migratório das regiões agrícolas para as regiões industriais urbanas. O trabalho braçal no campo é gradativamente substituído pelo trabalho manual nas fábricas, sendo que a população envolvida no setor secundário da economia aumenta sobremodo, em detrimento da população rurícola.

As ulteriores revoluções técnicas, por seu turno, incrementam a produtividade do trabalho fabril e o próprio excedente produzido por tal atividade, de tal sorte que se verifica um novo fluxo migratório em direção ao setor terciário da economia, caracterizado pelo trabalho intelectual, máxime seus departamentos envolvidos com produção de ciência e tecnologia, de tal sorte que o excedente econômico produzido no setor fabril é dirigido para consumo da população envolvida com o trabalho intelectual do setor terciário. É por tal motivo que o país com a maior produção e exportação de ciência e tecnologia, os EUA, consomem o excedente econômico produzido nos países industriais periféricos, máxime a China, e exibem uma distribuição populacional manifestamente favorável ao setor terciário da economia, com ampla liberação de trabalho manual em favor do labor intelectual. O setor educacional de tal país exerce papel decisivo na consecução de sua hegemonia quanto à produção de ciência e tecnologia no âmbito mundial. Destarte, a nova divisão internacional do trabalho apresenta não duas, mas três vértices que podem ser assim esquematizados, a grosso modo:

1) Países agrícolas (ex.: Brasil) produzem excedente econômico a ser consumido em

2) Países industriais (ex.: China) que produzem excedente econômico a ser consumido em

3) Países que produzem ciência e tecnologia (ex.: EUA).

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, procurador federal e historiador pela USP) 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

HIPÓTESE SOBRE A DIALÉTICA DA MERCADORIA

HIPÓTESE SOBRE A DIALÉTICA DA MERCADORIA

As corporações de ofício medievais colimavam, mediante coordenação de oferta e procura, obstar tanto a subsunção plena da produção artesanal à forma mercadoria, como também a separação entre força de trabalho e meios de produção, vale dizer, a transformação da própria força de trabalho em mercadoria.
Os Estados mercantilistas apenas expandiram tal coordenação para abranger o âmbito nacional como um todo, entravando a penetração do capital mercantil no âmbito da produção material.
A acumulação primitiva e a revolução industrial verificadas pioneiramente na Inglaterra completaram, todavia, a subsunção da produção industrial ao capital com a respectiva transformação da força de trabalho em forma mercadoria.
Isto posto, a hipótese que lançamos consiste na necessidade da planificação socialista abolir a forma mercadoria, mediante controle, inicialmente, não do processo de produção de capital, mas do processo de circulação de capital, notadamente a forma dinheiro de tal processo.
O escopo do controle inicial do processo de circulação de capital consiste em acelerar tal processo para que seu tempo de duração fique nulo, a saber, tendencialmente igual a zero, quando então restabelecer-se-á a coordenação perdida entre oferta e procura e a forma mercadoria começará a extinguir-se.

(POR LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, procurador federal)

DA CONTRADIÇÃO ENTRE O PROCESSO DE PRODUÇÃO E O DE CIRCULAÇÃO DE CAPITAL

CONTRADIÇÃO ENTRE O PROCESSO DE PRODUÇÃO E O PROCESSO DE CIRCULAÇÃO DE CAPITAL

Penso que em um mundo ideal para o capital, o tempo de circulação seria igual a zero, de tal sorte que a realização da mais-valia exibir-se-ia instantânea, vale dizer, o tempo para venda das mercadorias também seria nulo.
Todavia, o aumento da força produtiva do trabalho tende a aumentar o tempo de circulação do capital em razão do aumento do volume de mercadorias a serem vendidas, afora fazer a taxa de lucro decrescer de forma tendencial.
É por isso que as revoluções tecnológicas que vingam afetam a um só tempo os processos de produção e de circulação de capital, aumentando a força produtiva do trabalho e diminuindo o tempo de realização da mais-valia pela venda das mercadorias.

(POR LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, procurador federal)

domingo, 3 de agosto de 2014

REFINANDO A HIPÓTESE, TALVEZ AGORA MAIS INTELIGÍVEL

REFINANDO A HIPÓTESE HISTÓRICO-ECONÔMICA SOBRE AS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS DO CAPITAL

As revoluções tecnológicas pioneiras do capital afetavam basicamente o modo de produção da sociedade, a saber, o processo de produção do capital, conduzindo à queda da respectiva taxa de lucro em razão do incremento de sua composição orgânica.
A revolução tecnológica mais recente, ou seja, aquela vinculada à tecnologia da informação e, notadamente, a internet, afeta sobretudo o processo de circulação do capital, acelerando-o e arrostando a queda tendencial da taxa de lucro mediante aumento da massa de mais-valia obtida no mesmo lapso temporal, em razão da diminuição do período de rotação, sem que se altere a composição orgânica do capital.
Isto deve-se ao fato de que a taxa de lucro média do capital social total provavelmente atingira um patamar mínimo, abaixo do qual o sistema capitalista entraria em colapso, o que obsta doravante as revoluções do modo de produção, isto é, do processo de produção do capital, porquanto tais inovações provocam um incremento da composição orgânica respectiva.
Logo, com a internet, o capitalismo esgota sua capacidade de renovar o modo de produção e aumentar a produtividade do trabalho, a saber, de incrementar a composição orgânica do capital, eis que tal incremento reduziria a taxa de lucro a nível incompatível com a subsistência do sistema.
Esta singela hipótese ainda carece, evidentemente, de demonstração teórica e empírica.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, procurador federal)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

HIPÓTESE HISTÓRICO-ECONÔMICA SOBRE AS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS DO CAPITAL

HIPÓTESE HISTÓRICO-ECONÔMICA SOBRE AS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS DO CAPITAL

As revoluções tecnológicas pioneiras do capital afetavam basicamente o modo de produção da sociedade, a saber, o processo de produção do capital, conduzindo à queda da respectiva taxa de lucro. A revolução tecnológica mais recente, ou seja, aquela vinculada à tecnologia da informação e, notadamente, a internet, afeta sobretudo o processo de circulação do capital, acelerando-o e contrapondo-se à queda tendencial da taxa de lucro mediante aumento da massa de mais-valia obtida no mesmo lapso temporal. Isto deve-se ao fato de que a taxa de lucro do capital atingiu um patamar mínimo, abaixo do qual o sistema capitalista entraria em colapso final, o que obsta doravante as revoluções do modo de produção, isto é, do processo de produção do capital, de tal sorte que, com a internet, o capitalismo esgota sua capacidade de renovar-se, e depois dela será o socialismo ou a barbárie.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, procurador federal)

segunda-feira, 2 de junho de 2014

AKI KAURISMÄKI

O glamour nostálgico e conservador de Aki Kaurismäki.


Logo no início da belíssima película “O porto” (no original em francês “Le Havre”, de 2012), o sardônico protagonista Marcel Marx pronuncia misteriosamente algo assim como “O dinheiro circula melhor durante a noite”. A princípio, então, parece que o respectivo diretor Aki Kaurismäki homenageia a figura do revolucionário Karl Marx, certo? Veremos que não.

Com efeito, é lícito aventar que o exímio cineasta finlandês, neste filme, veicula uma crítica velada à sociedade fundada na circulação de mercadorias, na qual as pessoas relacionam-se apenas como vendedoras e compradoras, sem estabelecerem um contato minimamente cordial e humano. Em “O porto”, ao contrário, os pequenos comerciantes das adjacências, a saber, os proprietários da padaria, do bar, da quitanda, etc. nutrem por seus fregueses sentimentos de amizade e solidariedade, de tal sorte que às mercadorias, pasmem, cumpre um importante papel civilizador, ao aproximarem, e não afastarem os cidadãos.

Mas não estamos diante de uma obra engajadamente anticapitalista ou francamente socialista, nem de longe: não há qualquer vestígio do conflito entre capital e trabalho, nem um só trabalhador assalariado (ou “proletário”, como diriam os marxistas), enfim, não se divisa em nenhuma hipótese a classe operária portadora dos ideais revolucionários, conquanto a vida humilde, ou mesmo a pobreza estejam em evidência. Apenas os refugiados africanos sofrem de forma mais direta a violência crua do sistema, sendo certo, aliás, que o problema da imigração constitui um dos únicos indícios de que estamos no século XXI e não em meados do século passado.

Mas a Kaurismäki desagrada o ritmo cada vez mais frenético e impessoal da sociedade capitalista do século corrente, potencializado pela internet, e talvez sua utopia conservadora e nostálgica tenha fincado raízes na glamourosa França dos anos 1950 ou 1960. Sem embargo, o país que tem a cor da fraternidade estampada em sua bandeira foi escolhido a dedo pelo diretor finlandês para mostrar um mundo antiquado, em que os sentimentos antediluvianos de solidariedade e amizade, bem assim o amor desinteressado e incondicional, eram ainda cultivados com delicadeza.

Sua conservadora película é uma ode à fraternidade, e o Marx do filme está mais para a sutil ironia de Groucho e família, ao olhar para a sociedade do consumo de forma cordialmente desdenhosa.

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

domingo, 18 de maio de 2014

STANLEY KUBRICK, DE MARX A NIETZSCHE.

SOBRE “2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO”


Espetáculo soberbo e de grandes pretensões intelectuais, o filme de Stanley Kubrick mostra, sob a sombra do Friedrich Nietzsche de “Assim falou Zaratustra”, o embate entre o homem e a inteligência artificial, no caso representada pelo supercomputador HAL, cujo nome deriva de “heurístico algorítmico”. Com efeito, eis mais uma película que nos impele à reflexão, o que, já o tenho suscitado, indica a importância de uma obra de arte. Sendo assim, vejamos:

Em filosofia, a metafísica deriva da ilusão consistente em conferir autonomia à alma ou espírito, em contraposição ao corpo. Tal engodo, por seu turno, radica na oposição entre trabalho e pensamento. Explico: a necessidade de produzir e reproduzir heterônoma e diariamente a vida material enseja nos indivíduos a ilusória sensação de que seu pensamento, ao contrário do corpo, é livre, de que derivaria sua suposta autonomia.

O materialismo histórico mostrou a metafísica da mercadoria, plena de “manhas teológicas” na contraposição entre valor-de-uso e valor tout court: se o primeiro aspecto da mercadoria serve para satisfazer necessidades humanas, o segundo serve, na sua abstração, apenas para a acumulação infinita de capital, a despeito daquelas necessidades humanas.

Esta contradição metafísica e “teológica” da mercadoria somente poderá ser sobejada pela abolição da propriedade privada dos meios de produção, enfim, do capital e da supressão das classes sociais, quando então uma forma de Inteligência Artificial supranacional, mundial, será capaz de planejar a produção e reprodução diária da vida material de tal forma a exigir de cada um conforme suas potencialidades, e dar a cada uma conforme suas necessidades.

Neste caso, fica superada a forma mercadoria do produto social e extinto seu valor abstrato, valendo apenas seu valor-de-uso, a saber, sua aptidão para satisfazer necessidades humanas, e é este aspecto que será submetido à planificação por uma Inteligência Artificial mundial. Com a suplantação das manhas teológicas da mercadoria, extinguir-se-á toda a metafísica em matéria filosófica, pois os indivíduos na sua inteireza, unidade de corpo e pensamento, restarão real e plenamente livres do trabalho heterônomo: valerão as reais necessidades dos indivíduos, e não as necessidades do capital, alienadas daquelas.

Mas o que Nietzsche diz com isso tudo? Ora, este pensador procurou terminar definitivamente com toda a forma de metafísica em matéria de filosofia, mas talvez seu super-homem (übermenschen) advirá somente com o comunismo, tal qual vaticinado por Marx e os demais materialistas históricos.

(Por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

DIVAGAÇÕES CINÉFILO-MARXISTAS

DOIS FILMES INSTIGANTES: OS HOMÔNIMOS “SOLARIS” DE ANDREI TARKOVSKI (1972) E STEVEN SODERBERGH (2002)


As duas películas em testilha, lastreadas no romance também homônimo do ficcionista polonês Stanislaw Lem, oferecem dois belos espetáculos visuais que inclusive despertam para a reflexão sobre alguns temas de jaez filosófico bastante inquietantes. Ousamos, neste singelo opúsculo, expor algumas reflexões assim despertadas.

Cediço é que trabalho e sexo consistem nas formas básicas de produção e reprodução, respectivamente, da vida material da sociedade e da espécie humana.

No primeiro caso, o marxismo colimou suplantar a alienação econômica capitalista mediante a substituição da sociedade política pela sociedade regulada, na formulação brilhantemente sintética de Antonio Gramsci: cuida-se de instituir a planificação econômica pela classe trabalhadora em superação da desordem caótica do capital, sujeita a crises periódicas e multiplicação da miséria.

Hodiernamente, a engenharia genética e a clonagem buscam sobrepujar o que eu denominaria “alienação reprodutiva ou sexual”. Explico: decerto os seres humanos reproduzem-se pelo sexo, mas o fruto dele não corresponde ao desejo dos pais, ou seja, é impossível prever exatamente como será o filho ou filha. A genética, manifestamente ou não, pretende resolver essa alienação.

O planeta “Solaris” dos filmes homônimos guarda a capacidade de materializar entes humanos já ceifados pela morte e que são queridos e desejados pelos protagonistas. É a utopia da genética, essa certa imortalidade do desejado, mas há problemas aí: o objeto do desejo, materializado, também é sujeito de desejos, sendo certo ainda que esse poder conferido pelo planeta Solaris aos protagonistas da película revela-se potencialmente indesejável.

A controvérsia sobre o poder impõe-se, destarte, não apenas na questão econômica, mas também na questão da reprodução da própria espécie humana.

O interessante dos filmes, demais disso, consiste em verificar que, no essencial, a exploração do espaço sideral pelos humanos representa, em verdade, uma busca não pelo desconhecido, e sim por um espelho, mas um espelho tocado pela imortalidade ou, ao menos, pela regeneração, como o fígado de Prometeu. Não por acaso, a estação espacial que orbita o planeta Solaris leva o nome dessa figura da mitologia grega.

(Por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)