quarta-feira, 14 de maio de 2014

ANGELOPOULOS E KUROSAWA

O artista e o filósofo

Recentemente assisti a dois ótimos filmes coevos, de diretores bastante representativos de seus respectivos países, a saber, “Sonhos” do japonês Akira Kurosawa, realizado em 1990, e “Paisagem na neblina”, do grego Theodoros Angelopoulos, concluído em 1988.

São duas magníficas obras de estéticas antípodas, que descortinam o Kurosawa artista plástico e o Angelopoulos filósofo.

Decerto, “Paisagem na neblina” desvela-se uma película abstrata, com colorido quase reduzido a matizes de cinza, em que duas crianças irmãs perseguem em vão e obstinadamente por um pai que, supostamente residente na Alemanha, na verdade existe apenas em suas fantasias inculcadas pela mãe. Predominam nas cenas do filme o tempo frio, chuvoso e sujeito a nevascas, com um céu de cinzento invernal. Os liames entre as diferentes tomadas são tênues, e cada parte do filme funciona como uma mônada de significado, de tal sorte que o tempo da película transcorre isento de um fio condutor apto a conferir sentido homogêneo ao evolver como um todo. As circunvoluções das crianças, que não levam a lugar nenhum, podem então ser caracterizadas como metáforas da busca pelo sentido da existência do mundo, pelo pai divino capaz de atribuir inteligibilidade ao decurso dos dias, questões que, para Angelopoulos, o cinema não pode alcançar, malgrado exiba, com a cena em movimento, um simulacro do tempo: aqui merece destaque a tomada em que um dos personagens recolhe do lixo um fragmento de película de filme em branco, vale dizer, em que a câmera nada capturou. São questões, sem embargo, afetas aos filósofos, inclusive quanto às veleidades metalinguísticas.

Já “Sonhos”, de Akira Kurosawa, deveria intitular-se “Cores”, dada a profusão e a exuberância do colorido das imagens. É obra de artista plástico, que não colima o sentido do universo, mas o contempla na opulência da natureza, em sua beleza sempre retratada através do filtro do sol radiante de verão. Ecologicamente correto, o filme retrata o tempo cinzento e a paisagem devastada apenas como contrastes, quer dizer, para opor a insanidade bélica e nuclear à formosura da natureza. Kurosawa opõe assim o cientista nuclear ao artista plástico (Van Gogh), que manipulam as cores de formas antinômicas: o primeiro conhece bem as diferentes cores emanadas dos isótopos radiativos, usados para destruição em massa; Van Gogh, por seu turno, também maneja artificialmente em suas telas as cores do mundo, mas não para aniquilá-lo e poluí-lo, mas para torná-lo ainda mais bonito e harmonioso. Avulta em impacto a cena da película em que seres humanos mutantes, transformados em ogros de chifres, contorcem-se em dores lancinantes, gritando ao redor de poças de água de cor avermelhada pela contaminação nuclear.

Cineasta artista plástico, Kurosawa encontra, todavia, o cineasta filósofo Angelopoulos na destreza com que os dois conduzem a magia da sétima arte: eu, particularmente, fico com ambos.

Autor: Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador e advogado

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